22 August 2010

SANTÍSSIMA CRUZADA

Arcade Fire - The Suburbs

Garantem os relatos históricos que, quando, em 1087, Guilherme, o Conquistador, foi sepultado, em Caen, na abadia de Saint-Etienne, o seu corpo estava de tal forma obeso e inchado que, não cabendo no sarcófago que lhe havia sido destinado, o enorme esforço que foi necessário para aí o introduzir teve como pestilenta consequência o rebentamento do cadáver. Episódio assaz semelhante – por diversos motivos, como, adiante, se verá – ao primeiro falecimento do rock progressivo/sinfónico, pelo meio da década de 70 do século passado: não menos insuflada e pomposamente imperial, a música de todos os Yes, ELP, Pink Floyd, Barclay James Harvest ou Rick Wakeman da época só precisou de um apertão da canalha punk para conhecer destino tão pouco edificante quanto o do temível Guilherme. Mas, do mesmo modo que, com ele, aconteceu, apesar de defunto, a sua influência não se extinguiria facilmente: se, a partir do punk, a opção "less is more" determinaria, em boa medida, grande parte da produção das diversas sensibilidades indie/alternativas durante os períodos de 80 e 90, dos anos zero em diante, o apetite pela ênfase orquestral – já experimentado também, anteriormente, entre outros, pelos Echo & The Bunnymen, Tindersticks, Triffids ou Divine Comedy – regressaria e de forma particularmente voraz. Disciplinada, convenientemente emagrecida e esteticamente pertinente nos casos de Andrew Bird, Sufjan Stevens, St. Vincent, Noah & The Whale, Mumford & Sons, Grizzly Bear, My Brightest Diamond ou Fanfarlo (os ensinamentos históricos haviam sido devidamente digeridos através do filtro pop), porém, de novo, a escorregar para a grandiloquência messiânica com os Arcade Fire.


É muito difícil que uma educação mórmon não dê nisto (Jesca Hoop safou-se mas não é toda a gente que tem a sorte de poder ser "nanny" dos rebentos de Tom Waits): quem cresce a ouvir contar que Deus é de carne e osso e vive no planeta Kolob e que, se nos portarmos como Joseph Smith manda, iremos todos politeistamente procriar deusezinhos junto dele, só por acaso não dá consigo a proferir declarações portentosas e a imaginar-se o porta-voz iluminado de qualquer coisa. Win e William Butler foram à catequese dos Santos dos Últimos Dias e isso ajuda bastante a compreender o motivo por que hoje (ainda que não se afirmando como praticantes mórmons) continuam a fazer afirmações como "Os colégios internos, o exército e as igrejas são os únicos lugares onde as pessoas são obrigadas a permanecer em comunidade com gente que elas não escolheriam como companhia. Acho valiosa essa ideia de comunidade com pessoas com quem não temos nada em comum" ou “A Bíblia fala muito acerca do temor perante Deus. Esse é o tipo de medo que nos faz sentir o desejo de mudança”.


E também contribui utilmente para explicar as canções que os Arcade Fire interpretam: não há Grande Tema nem Interrogação Eterna que eles não se sintam tentados a abordar, preferencialmente naquele registo bombástico e monumental de quem galvaniza as tropas numa santíssima cruzada. Em The Suburbs, o alvo são os “kids” envenenados pela cultura-contemporânea-sem-alma-nem-coração que vegetam nos centros comerciais e que, mesmo sabendo que “the emperor wears no clothes, they bow down to him anyway”. O mundo está perdido, os subúrbios invadiram e devastaram a querida Mãe Natureza e, durante uma hora, qual sermão de proverbial tia velha, eles resmungam acerca de como (entrada para fanfarra sinfónica) “these days, my life I feel it has no purpose” e “tomorrow means nothing”. "City With No Children" assenta no riff de "Street Fighting Man", dos Stones, e, em "Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)", Régine Chassagne parece mesmo à beirinha de, a todo o momento, se poder transformar na Deborah Harry de "Heart Of Glass". São os dois melhores instantes do álbum.

(2010)

21 comments:

fallorca said...

B' 25

soso said...

Parece uma crítica a uma Band invertida. Não ouvi o disco.

João Lisboa said...

"uma Band invertida"

???!!!...

soso said...

Comunidade e tal.

João Lisboa said...

Ah, ok.

fallorca said...

Ahahahah... ganda confusão que práqui vai :)

soso said...

Estou a ver o "Prisoner". São comunidades a mais. Peço desculpa.

Vorklik said...

Porquê usar o prog para termo de comparação, quando o Springsteen é muito mais óbvio, e até mencionado nas entrevistas?

Porquê querer fazer passar por conservadores empedernidos uma banda que atacou ferozmente a administração Bush?

Talvez porque a honestidade não dê jeito quando se trata de confirmar e transmitir preconceitos?

João Lisboa said...

"Porquê usar o prog para termo de comparação, quando o Springsteen é muito mais óbvio, e até mencionado nas entrevistas?"

Portanto, o "mais óbvio" é que é importante, certo?

"Porquê querer fazer passar por conservadores empedernidos uma banda que atacou ferozmente a administração Bush?"

Não só atacaram a administração Bush como fizeram campanha pelo Obama. E isso impede-os de, nos exactos termos em que é referido no texto, defenderem as posições que defendem?

"Talvez porque a honestidade não dê jeito quando se trata de confirmar e transmitir preconceitos?"

Ser desonesto é, de facto, aborrecido. Tresler é, francamente, pior.

Vorklik said...

Eu gostava de ver a entrevista completa onde disseram isso. O contexto vale muito. E saber tirar as coisas de contexto tb.

Se o "óbvio" é importante? Deixo para quem estiver a ler isto decidir. Ou se compara ao Springsteen, influência assumida e clara. Ou se compara ao "odiado" prog, que os torna num alvo mais fácil. Para quem acha que isso é palavra feia, pois claro.

João Lisboa said...

"Eu gostava de ver a entrevista completa onde disseram isso. O contexto vale muito. E saber tirar as coisas de contexto tb"

Não era absolutamente imprescindível ser candidato ao Nobel da astrofísica para chegar lá sozinho. Mas não me custa nada fazer-lhe o jeito - edição brasileira da "Rolling Stone":

http://www.rollingstone.com.br/edicoes/9/textos/120/

Explique lá, então, essa história do "fora de contexto".

"Ou se compara ao Springsteen, influência assumida e clara. Ou se compara ao "odiado" prog, que os torna num alvo mais fácil. Para quem acha que isso é palavra feia, pois claro"

Compara-se com quem se acha ser comparável. Se estivesse para aí virado e fizesse sentido, até poderia compará-los com a dona Marlene da tabacaria e não com aquilo que as bibliazinhas do business preferem.

Pensar pela própria cabeça, já ouviu falar?

soso said...

Eu por exemplo vejo-os sempre comparados a quem muito estimo: a Band, e por quem muito estimo. Mas nunca ouvi um disco. O primeiro "hit" deles soou mal aos meus ouvidos.
E ele há tanta coisa por ouvir: por exemplo vou ouvir o "Prospect Before Us" da Albion Band que só agora conheci.
Espero ter trazido mais alguma confusão à caixinha de comentários.

Yours truly

soso said...

Ali em cima, a imagem, aquilo é o "Terceiro Homem"?

Desculpem, mas é uma pergunta honesta, ok?

João Lisboa said...

"o "Prospect Before Us" da Albion Band"

Bela música.

"aquilo é o "Terceiro Homem"?"

Yup. Da sequência nos esgotos de Viena.

"é uma pergunta honesta, ok?"

As desonestas também são bem vindas.

Vorklik said...

Pensar pela própria cabeça? Gosto da necessidade de o afirmar. Enfim. claro, mesmo que isso resulte em tiros completamente ao lado, e emergir de preconceitos.

Tirar do contexto? É revelar só a parte que interessa e esquecer o resto que o contraria.

João Lisboa said...

"Pensar pela própria cabeça? Gosto da necessidade de o afirmar"

Não afirmo, pratico.

"mesmo que isso resulte em tiros completamente ao lado, e emergir de preconceitos"

Opinião sua. Só.

"Tirar do contexto? É revelar só a parte que interessa e esquecer o resto que o contraria"

Importa-se de o demonstrar? Já lhe dei o link para a fonte e tudo...

vorklik said...

Podia-se, como já foi dito, dizer que eles já atacaram a direita religiosa pró-Bush e pró-guerra. Ou citar frases como "As bandas que sobrevivem são as que percebem isso e dão prioridade ao senso de comunidade.", ou "Win freqüentou estudos dominicais mórmons, mas também prestou atenção ao avô, pai de seu pai, que se alegrava em denegrir os dogmas da igreja." Enfim, coisas que os deixam muito longe de ser religiosos de mente fechada.

oh nélito, tu também? said...

eu ouvi dizer que eles costumam frequentar uma igreja Evangélica Baptista; se não fosse isso, eram automaticamente considerados lixo, todos eles.

João Lisboa said...

"Enfim, coisas que os deixam muito longe de ser religiosos de mente fechada"

Ora bem, finalmente, chegámos lá: mas onde é que no texto que escrevi se lê que eles são "religiosos de mente fechada"? Onde é que sequer - como diz uns quantos comentários atrás - eu digo que eles são "conservadores"?

O que lá se lê é que algo de tão teologicamente peculiar como uma educação mórmon (mesmo para quem já não seja praticante), inevitavelmente, deixa marcas. E são essas marcas que transparecem nas canções e nas atitudes.

Já agora, mesmo que os tivesse qualificado como "conservadores", isso não impediria, de modo algum, que tivessem apoiado a candidatura do Obama: ele não foi, de certeza, eleito só com os votos da "esquerda liberal".

Só para dar um exemplo: no conservadoríssimo estado do Utah (58% mórmon), apesar de aí ter sido eleito o McCain, o Barack Obama recolheu 34.7% dos votos.

"eu ouvi dizer que eles costumam frequentar uma igreja Evangélica Baptista"

Mas esse é um belíssimo e paradoxal exemplo luso (caso se trate de uma indirecta à cena FlorCaveira)!...

De qualquer modo, dentro do irredimível absurdo que são todas as religiões, as igrejas baptistas, em comparação com o delírio sci-fi mórmon, são do mais penteadinhamente mainstream que há.

Vorklik said...

Eu não li assim. Mas eu também não vejo onde transparece a tal educação nas canções. E ainda menos vejo onde está a tal ligação ao prog.

Anonymous said...

http://www.publico.es/culturas/335144/springsteen/sonamos/stones