ISTO NÃO É "O BALÃO DO JOÃO"
Natalie Merchant - Leave Your Sleep
Só quem nunca tenha, realmente, lido a Alice, de Lewis Carroll, é que poderá, equivocadamente, imaginar que se trata de um livro para crianças. Grace Slick e Tom Waits compreenderam-no, Tim Burton, não. E o mesmo se poderia dizer de uma infinidade de outros clássicos “infantis”, do Capuchinho Vermelho, de Charles Perrault, ao Principezinho, de Saint-Exupéry, histórias de suposta candura e inocência cujo sentido último dificilmente – e, muitas vezes, felizmente – será alcançado pelo hipotético público-alvo. Leave Your Sleep, o último álbum (duplo) de Natalie Merchant desde The House Carpenter's Daughter – uma colecção de versões de temas folk, de 2003 –, apesar de ter surgido, nos últimos seis anos, a partir das cantigas e embalos que Natalie foi criando para a filha, Lucia, desde que ela nasceu, não anda também muito longe desse modelo. Como ela própria confessa no belíssimo e informativo booklet de 80 páginas, em "hardback", “arranquei estes poemas obscuros e excêntricos das suas páginas lisas e amarelecidas e dei vida a uma parada de bruxas e raparigas destemidas, cegos e elefantes, gigantes e marinheiros e ciganos, igrejas flutuantes, ursos dançarinos, cavalos de circo, uma princesa chinesa, um moço de recados e muitos outros. (…) Os poetas são os guardadores da linguagem sagrada que descreve os nossos lugares santos – desconhecidos e impossíveis de conhecer. (...) O trabalho do poeta é rodear de silêncio tudo aquilo que vale a pena ser recordado”.
O trabalho de Natalie Merchant, esse, foi a sempre problemática tarefa de desocultar a música que cada texto traz em si e que está ou não disposto a revelar. Aqui, todos os vinte e seis se mostraram colaborantes, numa extensa lista que vai de Ogden Nash a e.e. cummings, Robert Louis Stevenson, Edward Lear, Gerard Manley Hopkins, Robert Graves, Christina Rossetti, Laurence Alma-Tadema ou às "nursery rhymes" da Mother Goose. Sim, isto não é, definitivamente, "O balão do João". E muito menos o é quando nos apercebemos que o elenco de mais de cem músicos que participaram nas gravações inclui gente como Wynton Marsalis, Medeski, Martin & Wood, os Klezmatics, o grupo de gospel, Fairfield Four, os irlandeses Lunasa e elementos da New York Philarmonic Orchestra, prontos a fazerem disparar melodias e palavras para todas as tonalidades de um micro-universo que contém em si bluegrass e barroco, R&B e pop de câmara, festa judaica e tradição nativa, swing e ecos das Apalaches, cabaret, Beach Boys, "chinoiseries" e New Orleans.
Se, como Natalie, igualmente, admite, “a agenda escondida deste projecto é vir a transformar-se numa produção teatral multimedia”, muitas expectativas deveremos alimentar acerca do que, em palco, há a esperar destas narrativas escritas por pregadores bígamos, crianças prodígio, corretores da Bolsa surrealistas e homossexuais geniais, repletas de monstros devoradores de crianças, morangos no oceano, velhas matronas azedas de vinte anos, figurões neuróticos, veleiros à deriva, tremendas maldições e "nonsense" delirante generosamente distribuído. É muito possível que Lucia não tenha, todas as noites, escorregado tranquilamente para o sono – pois se é o próprio lema do álbum que, numa quadra da Mother Goose, apela “Girls and boys, come out to play, the moon doth shine as bright as day, leave you supper and leave your sleep, and come with your playfellows into the street”... – mas que (mesmo, talvez, sem se aperceber completamente das peculiaridades do gosto da mãe quanto a canções infantis) se terá imensamente divertido, não sobram grandes dúvidas.
(2010)
1 comment:
Ui! que com tanto famoso, parece ser uma grande estopada. Talvez seja melhor uma Ópera maneirinha de John Adams.
Post a Comment