TEORIA DA CONSPIRAÇÃO (XV)
(join the dots)
Obrigar a Pensar
Não é exactamente intuitivo interiorizarmos a ideia de que aquela personagem de intelectual maduro e articulado que se encontra à nossa frente responde pelo nome de Adolfo Luxúria Canibal. Mesmo que, após vinte e cinco anos – o tempo de vida dos Mão Morta –, já nos devêssemos ter acostumado. Mas também porque, em particular, desde 1997, o percurso da banda de Braga (hoje, dispersa geograficamente) tem sido orientado pela exploração de um índice de autores e obras literárias que não constituem propriamente a dieta habitual do zoo rock’n’roll. Começaram por Heiner Müller e, daí, seguiram para a intervenção situacionista de Debord e Vaneigem, aportando, depois, a Ginsberg, Lautréamont e, agora, com o novo álbum, Pesadelo Em Peluche, investindo sobre J. G. Ballard, cuja obra, The Atrocity Exhibition, tomaram como matriz.
Ilustração de Phoebe Gloeckner para a
edição de Atrocity Exhibition de 1990
O que, segundo Adolfo, foi uma trajectória natural: “Nós fazíamos mais ensaios do que concertos, havia uma grande comunicação entre todos, compúnhamos em conjunto, apesar de estarmos geograficamente separados. E começámos a trabalhar com ideias agregadoras o que teve um realce maior com o Mutantes S.21, à volta das cidades, mas ainda sem pegar em mais nada a não ser uma ideia. O Müller foi uma encomenda para fazermos alguma coisa a propósito dos poemas dele. O que acabou por possibilitar que trabalhássemos algo mais conceptual. E descobrimos que funcionava bem trabalhar assim. Ao pensarmos em obras literárias, isso obriga-nos a retrabalhar as coisas, a mudar a linguagem, a encontrar outras soluções. E, desde aí – à excepção do Primavera de Destroços –, temos vindo a encontrar esta bóia de salvação”.
De épocas distintas, mais teóricos ou mais literários, existe uma certa relação de “parentesco” entre toda esta gente: “O mais antigo, o Lautréamont, foi considerado pelos surrealistas, um dos seus precursores. Os situacionistas – tanto o Debord como o Vaneigem – citavam simultaneamente os dadaístas e os surrealistas como seus antecessores directos. Para a "beat generation", a grande influência eram os surrealistas franceses, a escrita automática. O Ballard é um filho directo do William Burroughs. A única carta um pouco fora do baralho foi o Heiner Müller: é um autor que trabalha mais a dramaturgia mas há pontos de contacto, particularmente na sensação geral de mal-estar”. A escolha de Atrocity Exhibition – de passagem, recorde-se que foi também o título de uma das canções dos Joy Division – enquanto pano de fundo para Pesadelo Em Peluche decorreu da própria estrutura muito pouco convencional do livro: “Pode começar-se pelo fim, pelo princípio, pelo meio. E isso foi uma das coisas que nos interessaram. Queríamos voltar a fazer canções curtas para fugir do Maldoror que tinha sido um trabalho muito absorvente e que nos tinha massacrado.
Desenho de Salvador Dali para
Os Cantos de Maldoror (1934)
Queríamos respirar outra coisa. O Ballard começou por nos aparecer em termos genéricos. Mas, depois, lembrámo-nos do Atrocity Exhibition que não só é um dos livros-charneira do Ballard como já lá estão todas as sementes do que ele viria a fazer. Para nós, era um livro que podia abarcar todo o Ballard. Por outro lado, atraiu-nos a sua construção, sem fim, meio e princípio, em que ele incluiu aquilo a que chamava ‘novelas condensadas’ e onde a personagem principal vai mudando de nome (embora o nome comece sempre pela mesma letra) e de profissão, mas mantendo uma ligação à psiquiatria... a edição de 1990 que tem os comentários do próprio Ballard integrados no corpo do texto, em termos de escrita experimental, vai ainda mais longe do que o original, acentua aquela ideia de turbulência mental que o mundo tecnológico e massificado provoca no indivíduo. Achámos que era uma boa matriz para nós porque não nos obrigava a fazer um disco conceptualmente fechado, podíamos trabalhar canção a canção, picando ideias do livro, problematizando-as de outra forma. Quisemos que a mesma estranheza que fica a ressoar na cabeça do leitor se transportasse para o álbum”.
Sendo verdade que não é todos os dias que se tropeça numa canção-pop que tem como refrão “O córtex cerebral processa a informação e regista a reacção da medula espinal” – pelo que, no caso, a qualificação "pop" deverá ser tomada com uma pitada de sal – o facto é que Pesadelo Em Peluche acaba por resultar num dos discos dos Mão Morta de mais imediata digestão: “Foi deliberado: queríamos fazer canções curtas, no que isso implica de uma estrutura tradicional. Depois, o livro é contemporâneo da pop-art e ela debruça-se sobre os significados e as formas da linguagem de massas, descontextualiza-a, joga-a de outros modos, e tudo isso cai muito dentro do próprio universo do Ballard. Em termos musicais, fomos buscar um pouco a ideia de pegar em clichés sonoros dos últimos trinta anos do rock, desde os blues ao gótico, desviando-os, mas jogando com a sobreposição entre a não-estranheza musical e a estranheza do conteúdo”. O que, inevitavelmente, arrasta a interrogação acerca das intenções últimas da música do grupo: apenas um desabafo, uma imprecação contra a atmosfera irrespirável da latrina ou ainda acreditam que ela é capaz de determinar mudanças? “O nosso objectivo primário é, pura e simplesmente, divertirmo-nos. Mas podemos divertir-nos de muitas maneiras. E, aí, para nós, o essencial é uma coisa muito egoísta: obrigar-nos a pensar. Este exercício de pegar nos livros, dissecá-los, percebê-los e transformá-los noutra coisa, obriga-nos a isso. E, finalmente, gostamos de partilhar esse estímulo ao pensamento com quem nos ouve”.
É esse, então, o rasto dos Mão Morta que podemos também detectar na caixa que reedita, em simultâneo, Mão Morta, Corações Felpudos, O.D. Rainha do Rock & Crawl e Mutantes S.21? “Dentro dessa caixa negra estão quase todos os diversos caminhos que os Mão Morta percorreram. Nomeadamente no primeiro e no Mutantes que marcaram a sua época. Por acaso, antes do surgimento da Internet estava mais convencido que tínhamos estimulado esse gosto pelo pensamento que, há pouco, referi. Nessa altura, ia encontrando pessoas com quem falava e elas pareciam-me inteligentes e interessantes. Após o advento da Net, passei a ver muitas mais aí, a falar sob anonimato, e 99% delas parecem-me perfeitamente burgessas. De modo que não sei até que ponto é que isto poderá ter servido para conduzir alguém a pensar o que quer que seja. Claro que a Internet trouxe possibilidades de divulgação que antes não existiam: os Mão Morta, por exemplo, passaram a chegar ao Brasil e é do público mais interessante que nós temos, especialmente em São Paulo. Mas não sei se, tal como o objectivo de ir a Berlim – que foi o que nos levou a formar a banda – nunca foi atingido, se o outro de fazer as pessoas pensar um bocadinho terá sido alcançado de alguma forma. Com todo este excesso de informação, contrainformação, desinformação que circula, cada vez menos as pessoas estão informadas, há cada vez mais crença. Em matérias que dominamos, podemos facilmente distinguir o trigo do joio. Mas, noutras, 90% da nossa vida, somos guiados. Mas quem é que nos guia? As ‘fontes oficiais’ que nos poderiam assegurar a confiança na informação acabam sempre por ser contraditórias e ameaçam começar ter a mesma credibilidade do professor Karamba”.
(2010)
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