04 March 2010

A EXCEPÇÃO QUE IMPORTA


Peter Gabriel - Scratch My Back

Das críticas até agora publicadas sobre o último disco de Peter Gabriel, poucas são aquelas que, logo nas primeiras linhas, se conseguem desobrigar da sacramental referência ao significado profundo do "álbum de versões": ou se trata do caso do artista, em panne criativa mas preso por obrigação contratual à necessidade de desovar mais um opus, que justifica como "a homenagem que sempre sonhou prestar às suas grandes fontes de inspiração"; ou, por mera preguiça e desejo de uma sabática a que o patronato franze o nariz, opta pela finta em pose para a História, apresentando a sua releitura definitiva do "songbook" do cânone ocidental; ou será, enfim, uma combinação das diversas modulações dessas hipóteses, historicamente legitimadas, na era moderna, a partir de exemplos ilustres como Pin Ups, de David Bowie”, e These Foolish Things, de Bryan Ferry. O que, de um modo geral, é absolutamente verdade. Como sempre, porém, são as excepções que importam. E – arrume-se já a questão – Scratch My Back, qualquer que seja a sua motivação, é uma delas. E das melhores. O título e o conceito decorrem da expressão inglesa "scratch my back and I’ll scratch yours" que, muito imperfeitamente traduzido, será qualquer coisa entre "amor com amor se paga" e "temos de ser uns para os outros". Por outras palavras, nesta gravação (gasolina sobre o fogo da tese malévola: a primeira do inventor da Real World desde Up, de 2002), Gabriel, cantor, interpreta doze canções de outros tantos autores que, em troca, no anunciado volume simétrico – And I’ll Scratch Yours – se ocuparão de igual número das dele.


"Heroes" (D. Bowie)
 
Primeira surpresa: os reinterpretados vão de "modern classics" como Lou Reed, Randy Newman, David Bowie, Paul Simon, Talking Heads e Neil Young, a gente bastante mais recente da estirpe de Regina Spektor, Arcade Fire, Elbow, Bon Iver, Stephin Merritt e Radiohead. A segunda é o dogma: nada de guitarras nem bateria ou "groove" rítmico. Antes, os arranjos (piano, cordas e sopros) cinematicamente orquestrais ou austeramente glaciais – repletos de alusões a Reich, Arvo Pärt, Stravinsky ou Vaughan Williams –, do ex-Durutti Column, John Metcalfe, que oferecem à voz de Peter Gabriel a mesma espartana paleta de emoções que John Cale teceu, para si mesmo, em “Heartbreak Hotel” ou, para Nico, em The Marble Index. Constatação irrefutável: “Mirrorball” (Elbow), “Listening Wind” (Talking Heads), “Flume” (Bon Iver), ou as enormes “My Body Is A Cage” (Arcade Fire) e “Après Moi Le Déluge” (Regina Spektor) são absolutos triunfos e quase todas as restantes, num plano em que os termos de comparação musicais são American Gothic, de David Ackles, Songs Of Love And Hate, de Cohen, Opiates, dos Anywhen, ou The Love Songs, de Peter Hammill, ficam-lhes muito pouco atrás.

(2010)

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