14 February 2010

OS DOIS LADOS DA QUESTÃO



Fanfarlo - Reservoir




Owen Pallett - Heartland

A propósito de Reservoir, houve já quem tivesse escrito que a última coisa de que o mundo precisa é de bandas de rock orquestral, derramando épicos insuflados à la Arcade Fire sobre o povo desprevenido. Acontece que, por motivos absolutamente diferentes, tenho exactamente a opinião inversa: tal como sucedeu no histórico caso Doors vs Bunnymen – em que o modelo foi claramente suplantado pelos copistas –, todas as supostas (e reais) derivações recentes da banda canadiana, se lhe têm tomado de empréstimo o template estético como ponto de partida, no final do processo, apresentam-no consideravelmente emagrecido de excessos, limpo de arrebatamentos histriónicos e higienicamente a salvo da embaraçosa aura de messianismo litúrgico. Mumford & Sons e Noah & The Whale estão aí muito à mão para o demonstrar e, agora, os londrinos Fanfarlo encarregam-se de fornecer o derradeiro QED.



Um empregado sueco da Beggars Banquet (Simon Balthazar, voz, guitarra, teclados, bandolim, sax, clarinete, glockenspiel), um livreiro (Justin Finch, voz e baixo), um editor de uma revista de viagens (Leon Beckenham, trompete, teclados, melódica), uma professora de Inglês (Cathy Lucas, violino, teclados, bandolim, voz, serra friccionada) e um conselheiro vocacional de estudantes universitários (Amos Memon, voz e percussão), autodenominados a partir de uma novela de Baudelaire, inventam o género de música que, tendo, indiscutivelmente um ou dois dedos de um pé na pop “barroca” tal como Butler & Chassagne a praticam, vê os movimentos disciplinados por meio das justíssimas chibatadas correctivas aprendidas no manual-VU, lido segundo a tradução dos Talking Heads (Balthazar, por outro lado, também é algo mais do que apenas um discípulo de David Byrne explicado às massas pelos Clap Your Hands Say Yeah), e deixa-se temperar com as “etnicidades” recomendavelmente fake adquiridas na tendinha Beirut, de Zach Condon, e um ou outro subliminar psicadelismo da marca Neutral Milk.



Owen Pallett – ele, o orquestrador dos Arcade, mas, igualmente, dos Grizzly Bear, Beirut, Pet Shop Boys, e, heteronimamente, Final Fantasy – contribui com o outro ângulo da questão: entregue a si mesmo, aquilo que, nos Grizzly e Beirut, enriquece o tecido musical, é aqui somente a mesma pompa e decorativismo florido com que encadernou Funeral e Neon Bible. Conceptual e grandiloquente, Heartland pertence aquela família de grotescos empadões narrativos de que Ys, de Joanna Newsom, é um dos mais notórios exemplos: Lewis, “a young, ultra-violent farmer”, dialoga com o seu criador na terra de Spectrum, habitada por personagens de nomes The Butcher, Cockatrice, No-Face e Blue Imelda (uma espécie de Lewis Carroll que partilhou psicotrópicos com Philip K. Dick e a coisa correu mal a ambos), enquanto, à sua volta, a Czech Philarmonic Orchestra, Nico Muhly e "tutti quanti" debitam em piloto automático o catálogo integral de lugares comuns do sinfonismo “moderno” arrebicado de bruitage electrónica. Em curtas palavras: não é Andrew Bird nem Sufjan Stevens quem quer, só quem pode.

(2010)

2 comments:

aaa said...

Por curiosidade,o tal caso doors-bunnymen foi mesmo discutido nesses termos?

João Lisboa said...

Yup.

"Echo & the Bunnymen's dark, swirling fusion of gloomy post-punk and Doors-inspired psychedelia brought the group a handful of British hits in the early '80s, while attracting a cult following in the United States."

http://www.allmusic.com/cg/amg.dll?sql=11:fifyxqe5ldhe