01 February 2010

AMÉRICA LENDÁRIA



Vários - We Are Only Riders: The Jeffrey Lee Pierce Sessions Project

Jeffrey Lee Pierce – jovem suburbano da periferia industrial de Los Angeles que, apesar de aluno brilhante, era dado a apresentar ensaios sobre Ernest Hemingway constituídos por dez páginas em branco –, no final dos anos 70, era crítico de música do fanzine punk, “Slash”, de Los Angeles, e escrevia sobre rockabilly, blues e reggae. Era também o presidente do clube de fãs dos Blondie e sonhava trabalhar para o departamento de música do Smithsonian Institute na pesquisa de velhas gravações de blues e country. Do mesmo remoinho do punk de LA que envolveria os X, Blasters, Circle Jerks, Germs e Black Flag, inventou The Gun Club, alucinação de vudu, psychobilly, Ornette Coleman, “Tales From The Crypt”, álcool, blues, heroína e country.



Fire Of Love (1981) iniciou o percurso que, em 1996, aos 37 anos, terminaria como conta Mark Lanegan: “No princípio de 96, foi para o Japão mas, imediatamente antes, tínhamos estado em casa da mãe dele a escrever canções. Parecia estar realmente em boa forma, o que nem sempre acontecia: por vezes, mal conseguia andar de tão desfeito que estava. Quando regressou do Japão, deixou-me meia dúzia de mensagens no atendedor de chamadas. Parecia completamente fora de si apesar de não estar embriagado. Uma coisa estranhíssima, dava a ideia de ter endoidecido. Alguém acabou por me contar que ele tinha voltado a beber, o fígado lhe havia intoxicado o organismo e sofria de dcemência. No hospital tinham-lhe dado alta dizendo que nada podiam fazer por ele. Pouco depois, recebo um telefonema: estava no Utah e, aparentemente, normal. Disse-me ‘Que raio, meu, toda a gente me diz que vou morrer, é sempre o mesmo’. Uma semana depois, entrou em coma e morreu”.



Nunca tendo alcançado verdadeiramente uma projecção universal (e, por hoje, razoavelmente esquecidos), os Gun Club e Jeffrey Lee Pierce deixaram, no entanto, um considerável culto em cujos fiéis se incluíram os R.E.M. White Stripes, Nick Cave, Wim Wenders, os Pixies ou Henry Rollins, entre diversos outros. Foi um deles, Cypress Grove (com Pierce, em 1992, gravaria Ramblin' Jeffrey Lee and Cypress Grove with Willie Love, essencialmente, um álbum de versões de blues de Howlin' Wolf, Lightnin' Hopkins e Skip James), que, ao arrumar gavetas, tropeçou numa cassete de maquetas e esboços que ambos haviam gravado pouco antes da morte de Jeffrey. A partir dali, iria ser possível reconstituir, então, a última parcela inédita da obra de Pierce, com a participação de fãs, discípulos e herdeiros, este We Are Only Riders. Porque o número de temas sobreviventes era escasso, alguns são objecto de duas e três interpretações mas, só pontualmente, as balas deste Gun Club parte-II falham o alvo.



Nick Cave, a solo e com Debbie Harry, em "Ramblin’ Mind" e "Free To Walk", é imperial, ela, sozinha, em "Lucky Jim", assina a sua melhor interpretação desde há muito, Mark Lanegan (com e sem Isobel Campbell), arrancam pelas tripas o Cash que se acoitava na alma de Jeffrey Lee, os Raveonettes projectam "Free To Walk" para um céu semeado de mazzy stars e Lydia Lunch, David Eugene Edwards, The Sadies, Johnny Dowd, Kid Congo Powers (ele, o nómada que circulou dos Gun Club para os Cramps, Die Haut, The Fall e Bad Seeds) Mick Harvey, Dave Alvin e os Crippled Black Phoenix (o inesperado único elo débil nesta colecção) – com aparições do fantasma da guitarra samplada de Pierce recuperada das cinzas – compõem aquilo que é tanto uma justíssima homenagem quanto um óptimo álbum de música daquela América "borderline" e lendária que nunca nos fatigaremos de escutar, ler e admirar.

(2010)

3 comments:

Lola said...

Aqui, na música, reside o melhor do blog.
Lá vou eu arrumar uma semana de descobrimento.

João Lisboa said...

Ora, ora... na música e no resto.

:)

Lola said...

Mas a música dá mais alegria.