18 March 2009

UMA ETERNA NÓMADA


Há cerca de dois anos, aquando da publicação de Abril (centrado na reinterpretação de canções de José Afonso), já no final da entrevista, quase casualmente, Cristina Branco confessava-me que o álbum seguinte já estava em fase de pré-produção, “a gente não pode parar!”. E, com um rigor superior ao de todos os profetas bíblicos, anunciava que “só sairá em 2009 e são doze poemas e doze compositores, todos portugueses. A intenção é que sejam os cantautores a compor: o Vitorino, o Janita (que fez apenas música para um poema fantástico da Hélia Correia), o Sérgio Godinho, tenho dois poemas do Júlio Pomar que gostava que fossem musicados pelo António Vitorino de Almeida, a letra para um tango do Vasco Graça Moura, dois poemas do Manuel Alegre escritos propositadamente para este disco e ainda deverão surgir outros nomes como o João Paulo Esteves da Silva, o Ricardo Dias e a Amélia Muge”. Obedeceria a um tema central, o tempo em sentido lato, e teria como título Kronos. Com uma precisão de relojoaria suiça, na data prevista e com os intervenientes planeados, ei-lo pronto e magnífico.


Hoje, Cristina não se recorda desses seus dons de vidência e conta que “nessa altura, já tinha algumas ideias dos autores que desejava convidar mas ainda não tinha feito convites. Com a Amélia Muge foi muito engraçado porque eu tinha referido na imprensa o nome dela, e um dia telefonou-me e disse-me ‘Onde moras? Vou ter contigo a tua casa!’. Convidei-a para jantar e disse-me que já tinha uma música e letra prontas para mim. E é aquela pérola, "O Meu Calendário". "Histórias do Tempo", a outra letra dela para uma música do Ricardo Dias que fecha o disco, é quase um resumo final. Mas eu sabia perfeitamente quem queria convidar”.Até as hipotéticas falhas (“Ainda terei de falar com o Fausto, se calhar, estou a antecipar demais algumas coisas”, na futurologia de há dois anos) se confirmaram…

Mas porquê o tempo como eixo conceptual? “Apetecia-me falar sobre isso, sobre o que perdi e ganhei, sobre a forma como evoluímos no tempo, mesmo fisicamente. Para além disso, passaram onze anos e dez discos, fazia-me sentido – com mais dois discos de permeio em que me permiti explorar o reportório das pessoas por quem tenho mais admiração na música portuguesa, a Amália e o José Afonso – fazer uma passagem para os cantautores portugueses. No fundo, são eles quem ainda está a escrever. O desafio que lancei foi, então, que me escrevessem um fado sobre o tempo”. Um fado, exactamente um fado, ou uma canção – fado ou não-fado – sobre esse tema? “Um fado, pedi sempre um fado. Claro que a maioria deles não são fados. Alguns, o Zé Mário Branco, por exemplo, tiveram o cuidado de, já com a música feita, me terem ligado a dizer que não tinham composto um fado porque não era assim que me viam. O Ricardo que foi responsável pelos arranjos ficou muito aflito porque tínhamos combinado fazer um disco de fados… As pessoas não me vêem assim, ponto final. Apetecia-me que fossem fados e gosto de me ouvir a cantar fado. Se ouvires o primeiro tema com o poema do Manuel Alegre, um dos que são mais assumidamente fado, está com imensa garra, é assim que eu canto fado e apetecia-me fazer aquilo pelo disco fora. Não aconteceu, têm atmosferas muito diferentes. Simplesmente, aceitei. A princípio, também fiquei um bocadinho atarantada mas, no fundo, aquilo sou eu. Óptimo, gosto dele como está”.

Pausa nas questões identitárias (que, como mais à frente se verá, preocupam muito menos Cristina Branco do que aqueles que a escutam) para dar lugar à forma como o público – o que ainda compra discos e aquele que, na muito preenchida digressão deste ano, muito desproporcionadamente se distribui quase todo por Holanda, França e Alemanha e só residualmente por Portugal – se apropriará de Kronos: “É provável que o conceito global do álbum possa escapar a quem o ouve e que ele acabe por ser escutado canção a canção. De início, tive essa intenção mas, quando se pede doze poemas e doze músicas, não pode haver uniformidade. De resto, nunca concebo um disco a pensar no modo como ele será recebido. Não faria sentido, não seria eu. Estaria a cantar aquilo que os outros desejariam que eu cantasse. Nunca tive esse tipo de imposição, sempre tive liberdade para fazer os discos como bem entendesse. Tenho a grande felicidade de trabalhar não para Portugal mas para França e sinto que tenho outra liberdade. Nunca escolhem temas, nunca discutem títulos de álbuns, nada”.


Qual será, então, o espaço certo no grande puzzle da música portuguesa onde Cristina se encaixa e se sente confortável? “É um lugar muito volante, não há uma gaveta onde me coloque. Até os senhores da Fnac têm dificuldade… um dia, vamos a votação, dêem-lhe um nome que eu aceito. Que é que eu faço? É fado, tem guitarra portuguesa, defina-se como fado. Para mim, é, mesmo quando me dizem que não se trata de fado. Eu comecei a ouvir fado muito tardiamente, não venho daquele universo, e passei directamente para a música que era feita para mim e não fui explorar a história do fado. Aceito que os puristas digam que fados há três ou quatro e o resto são cantigas. Aceito que aquilo que faço sejam cantigas. Mas não me podem impedir que eu chame fado aquilo que faço. Porque eu entendo que a sonoridade da guitarra portuguesa nos transporta imediatamente para aquele género. Mas não perco grande tempo com isso e até agradecia que dessem um nome àquilo que faço para se pôr termo a essa discussão. É-me indiferente. Faço aquilo de que gosto. Que seja o que as pessoas quiserem. Mas, de facto, não me sinto fadista porque ser fadista é quase uma atitude de vida. Se falares com a Raquel Tavares, por exemplo, ela defende aquele território que é muito seu, muito próprio, quase como uma bandeira. Acho fantástico mas isso eu não sou. Apetece-me ter a liberdade de cantar o que me der na gana, não quero esse tipo de grilhão no pé. Sou uma eterna nómada. O que modifica mais o género será a minha forma de interpretá-lo? Eu não faço aqueles melismas que são comuns no fado, quase que só digo as palavras. Isto transformará, de alguma forma, os cânones do fado?”. Inclina-se sobre o gravador e, com a mão em gesto de quem, à socapa, confia um segredo, sussurra: “Mas é fado, para mim, é fado”.

(2009)

4 comments:

Anonymous said...
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Anonymous said...

"This coincides with Greek mythology, where we can find a description of three different 'gods of time': Chronos, Aeon and Kairos. While Chronos symbolizes linear, measurable time, and while Aeon is a symbol for the duration of time, Kairos stands for coincidence, the coming together of everything necessary for something to manifest. While Chronos is the time that can be experienced with the help of man-made measuring instruments, such as watches, Kairos can never be "made" but can only be immediately experienced in the moment he appears. Kairos is radically linked with the "now", in one instant flashing out the depth of the present moment, and if we do not recognize and seize the unique moment, this particular creative impulse is lost forever."

fallorca said...

Não me importava nada de ser mochila de uma nómada destas, fiufiufiu...

João Lisboa said...

Respeitinho, vá.