08 February 2009

RITUAIS IMAGINÁRIOS



Andrew Bird - Noble Beast

O que pensa Andrew Bird (ou as personagens que, por ele, pensam) acerca do mundo? “Tenuous at best was all he had to say when pressed about the rest of it, the world, that is, from Proto-Sanskrit Minoans to porto-centric Lisboans, Greek Cypriots and harbour sorts who hang around in ports a lot”. O futuro da espécie sob um ponto de vista darwiniano ou só o futuro dele mesmo? “They took me to the hospital, they put my body through a scan, what they saw there would impress them all, for inside me grows a man who speaks with perfect diction as he orders my eviction, as he acts with more conviction than I”. E sobre o estado de conservação do planeta, as questões ambientais, o caso Freeport? “No peace in the valley, malarial alleys where the kittens have pleurisy, donning my goggles, valerian ogles, to see microscopically”. Na verdade, nem sequer é certo que todas estas citações dos textos de Noble Beast se refiram ao mundo, à evolução do Sapiens sapiens ou ao episódio Freeport. Por aqui e por um cerrado labirinto de “calcified arhythmetists”, “Uralic syntaxes” e “anthurium lacrimae”, o que – sob um hipotético ângulo de sci-fi kafkiana – se desenha é o mapa neurolinguístico do cérebro de Bird em pleno processo de criação.



Em entrevista ao A.V. Club, ele explicou o método: “Por vezes, não tenho grandes hipóteses de escolha. Sigo sempre o instinto e presto atenção ao que me vai pela cabeça. Essa é a minha regra número um. Quando uma coisa começa a ganhar um certo peso penso ‘Tem de ser, tenho de incluir Cipriotas Gregos nesta canção’. É um pequeno desafio interior: criar rituais imaginários para ajudar a transição de uma canção da não-existência para a existência. Muitas vezes, começo por uma interrogação. Uma palavra desperta-me o interesse, gosto do modo como soa, mas desconheço-lhe o significado. E, durante algum tempo, não ligo a isso. Depois, sou capaz de perguntar a amigos o que ela quer dizer. O que conduz a conversas bastante mais interessantes do que o que, de facto, se encontra no dicionário”. Aqui, é imprescindível acrescentar uma outra dimensão que torna a música de Andrew Bird absolutamente singular: o conflito entre “os irreprimíveis impulsos pop para escrever canções concisas e atraentes” e “aquela espécie de inquietação que me faz manter interessado nela e me conduz a divagar imenso”.



Chegámos ao ponto: Andrew Bird, neste e nos anteriores álbuns, resolveu como muito poucos antes o dilema de arrumar o desejo de complexidade do vetusto prog-rock no interior de um vocabulário pop satisfatoriamente legível. E fá-lo de modo admiravelmente elegante, alinhando canções mais extensas com microfaixas incidentais (ou exclusivamente instrumentais, no segundo CD, Useless Creatures, da edição deluxe), costurando os loops que o cada vez mais indispensável Martin Dosh lhe cozinhou com o seu violinístico experimentalismo de câmara, uma ou outra alusão tropicalista, duas ou três manipulações “a bit like Brian Eno”, algum tempero "fake-ethnic" e um sistema nervoso de amáveis carrosséis rítmicos. Ele sintetiza tudo melhor do que eu o faria: “As palavras têm o poder de nos iludir, estão carregadas de subtexto, muitas delas estão gastas e tornaram-se lugares-comuns. São traiçoeiras. As melodias são honestas, só podem ser aquilo que são”. Queiram confirmar.

(ler também o óptimo texto de Rui Tavares no "Ípsilon")

(2009)

5 comments:

Anonymous said...

[http://easydreamer.blogspot.com/2009/02/kyrios-zulu-2.html]

João Lisboa said...

Muito bom. Mas o site da igreja não abre.

fallorca said...

Tem qualquer coisa de Penguin Cafe Orchestra ou é cera no auricular?

Anonymous said...

Muito bom, este 'Noble Beat'. E é um prazer ouvir Andrew Bird falar, fica-se com uma clara ideia de como é 'diferente' o universo no qual ele vive, sem que isso signifique que ele é incoerente ou alucinado. É pura e simplesmente um artista, seja lá o que isso queira dizer.
Fui há uns anos a um concerto dele na Casa das Artes de Famalicão (um belo espaço com uma boa sala de concertos, onde também já passaram John Cale ou Rufus Wainwright), e já aí fiquei com essa sensação. Nesse concerto ele tocou sozinho, apenas o pedal de loops em seu auxílio, e soou como uma big band. O homem é mesmo um geniozinho, e ainda nesse concerto tivemos oportunidade de assistir ao 'Nervous Tick Motion...' com coreografia e tudo!
Um abraço,

G.J.

(e obrigado pelo link!)

menina alice said...

‘Tem de ser, tenho de incluir Cipriotas Gregos nesta canção’ :)))

Ando deliciada com esta rodelita.