07 November 2008

MUDAR O MUNDO? *



Hector Zazou - Songs From The Cold Seas

"Se a música não serve para mudar o mundo, então serve para quê?" é a interrogação que coloca Hector Zazou no momento em que, após uma série de publicações, se aventura à transmutação das tradições dos mares gelados, ao mesmo tempo que trabalha numa nova instrumentação da Arte da Fuga, de Bach. Podíamos passar a pergunta a Laurie Anderson e ouvi-la responder que "a função da arte não é fazer do mundo um lugar mais justo mas apenas um lugar mais maravilhoso". O que, se não transforma radicalmente os termos do problema, pelo menos, desloca o centro de gravidade da ética para a estética. E, nessa circunstância, ajuda um pouco a responder ao que Zazou sugere: mesmo que não tendo outra utilidade (Oscar Wilde, recorde-se, ia bastante mais longe: "All art is quite useless"), contribui para determinar a visão que construímos do mundo. Isto é, a sua representação individual e subjectiva, em última análise, virtual.


Värttinä - "Emoni Ennen"

Assentemos os pés no chão: quantos cidadãos do planeta podem verdadeiramente afirmar que conhecem em profundidade a vida e a cultura da Sibéria, do Alasca, da Gronelândia, da Islândia, das ilhas Hébridas, da Suécia, da Finlândia, da ilha de Hokaido? Certamente, demasiado poucos para constituir sequer uma minoria significativa. Mas todos os que, de agora em diante, escutarem Songs From The Cold Seas passarão a ser capazes de imaginar uma atmosfera de sons e ambientes que circularão pelas vozes e instrumentos de Björk, Siouxsie, John Cale, as Värttinä, Jane Siberry, Suzanne Vega, Barbara Gogan, Balanescu Quartet e Harold Budd. De uns, sabemos quase tudo. Dos outros (e há muitos mais) aprenderemos que Lena Willemark é uma das maiores cantoras tradicionais suecas, que a gronelandesa Marina Schmidt se inspira em Bob Dylan e nos xâmanes de Tulé, que Lioudmila Khandi é uma voz espectral do norte da Sibéria, que Elisha Kilabouk e Koomook Nooveya praticam os cantos Inuit do Grande Norte canadiano, que Tokiko Kato interpreta canções da minoria ainu de Hokaido como uma Juliette Greco do Sol Nascente ou que Vimme Saari é um notável representante das melopeias "joiking", da Lapónia. Porque, de facto, nesta sua visão pessoal das canções dos mares frios, Hector Zazou repetiu o procedimento que, nas Nouvelles Polyphonies Corses e em Sahara Blue, tinha utilizado: recolher um determinado material "em bruto" e propô-lo como pretexto para a colaboração com uma infinidade de músicos das mais diversas origens. A saber, todos os anteriores e ainda Marc Ribot, B.J. Cole, Mark Isham, Renault Pion, Budgie (Banshees), Brendan Perry (Dead Can Dance), Sara Lee (ex-Gang Of Four), Catherine-Ann McPhee, Jerry Marotta, Lightwave, as Angelyn Titot e outros demasiado numerosos para referir exaustivamente.


Värttinä - "Yötulet"

Como surge, então, este cenário que supomos árido e glacial traduzido para a linguagem sonora contemporânea? A pergunta quase contém a resposta: se existem discos onde a intemporalidade e a mais absoluta modernidade se cruzam em perfeitíssimo exercício de geometria, Songs From The Cold Seas é, decerto, um deles. Poderia ser dissecado faixa por faixa mas o tríptico de abertura é suficiente para lhe identificar a direcção e o sentido: "Annukka Suaren Neito", com a energia vocal das Värttinä sobre um fervilhante tapete rítmico de electrónica e percussões (Budgie, Brendan Perry e as Angelyn Titot), a espessa distorção das guitarras e o grito do trompete de Mark Isham, cede, insensivelmente, o lugar a "Visur Vatnsenda-Rosu" onde a voz de Björk flutua liberta da gravidade, à superfície de uma imóvel melodia infinita, mergulhada na ondulação dos teclados de Zazou e do clarinete de Renault Pion. Em contraste, a seguir, "The Long Voyage - com música de Zazou e texto retirado do poema "Silhouettes", de Oscar Wilde -, apresenta-se como uma reafirmação do rumo da trajectória nas vozes de Suzanne Vega e John Cale, em plena ebulição rítmica no interior de um sonho: "Ocean is a voyage, a long, long voyage, going up, up, up". É o sinal para o prosseguimento desta expedição estética que se concluirá com uma ofegante "Song Of The Water" canadiana, depois do Balanescu Quartet se ter enleado nas cordas de um koto japonês sob a acrobacia do "yodel" de Lioudmila Khandi, de Catherine-Ann McPhee ter voado sob o piano imponderável de Harold Budd e de Siouxsie ter recitado palavras de Wilford Gibson enxertadas no tecido de um canto xamânico. E é também a revelação de um novo mundo definitivamente transfigurado a partir da sua matéria sonora, sempre disponível para todas as mutações.

* (não faço a menor ideia qual o motivo porque, em 1995, escrevi três textos acerca de Songs From The Cold Seas; como o anterior nem era particularmente brilhante, repesco, agora, este - poupo-vos ao terceiro)

(1995)

1 comment:

Táxi Pluvioso said...

Never mind Oh!bama here's... Stu Rasmussen, foi eleito mayor de Silverton, Oregon. O mundo mudou e só passaram uns dias da eleição do messias. Aleluia! Aleluia! (Não cantada pelo Cohen mas pelos Happy Mondays).