08 October 2008

FECHAR FERIDAS



Dennis Wilson - Pacific Ocean Blue




Brian Wilson - That Lucky Old Sun

O Verão eterno. O surf. “Babes” permanentemente bronzeadas. “Fun, fun, fun”. A visão de postal do paraíso californiano que se colou à lenda e à música dos Beach Boys dificilmente poderia coincidir menos com a realidade. Literalmente brutalizados pelo pai/manager, Murry Wilson, um “songwriter” medíocre e um tirano doméstico que exercia a autoridade por meio do terror, nenhum dos três irmãos Wilson, ao longo da vida, conseguiria cicatrizar verdadeiramente as feridas abertas durante a adolescência. Brian Wilson, aos 25 anos, angustiado pelo que supunha ser a irredimível inferioridade de Pet Sounds perante Sgt. Pepper's, dos Beatles, e mentalmente desgovernado por uma dieta demasiado rica em alucinogénios, mergulharia, até hoje – de psicocharlatão em pseudoterapeuta –, num limbo de vida semi-consciente, necessitando de cerca de quatro décadas (e meia dúzia de álbuns intercalares em dente de serra) para, finalmente, concluir o mítico Smile. Carl Wilson, que manteve o barco dos Beach Boys a flutuar após o naufrágio de Brian, acabaria também, no final dos anos 70, por ajoelhar diante dos químicos, morrendo de cancro cerebral e pulmonar, em 1997.


Dennis Wilson Forever (doc. real. Billy Hinsche, 2007)

Dennis, o único que, afinal, correspondia ao perfil do puto das praias da Califórnia – radicalmente hedonista, adepto do presente do indicativo como único tempo verbal, ávido consumidor de todas as substâncias que reconfiguram a percepção e... surfista –, era “apenas” o baterista do grupo mas aquele por quem as fãs abdicavam sem esforço de peças de roupa interior. Íntimo do tresloucado Charles Manson, tão sedutoramente fascinante como – em particular, nos últimos anos de plano inclinado – capaz de criar o deserto à sua volta no círculo de namoradas, esposas e amigos, morreria, em 1983, aos 39 anos, afogado no oceano de Marina del Rey. Seria ele, porém, quem (como o irmão Brian) haveria de deixar para a história da pop um “lost album” e meio, agora, finalmente reeditados.


"River Song"

Pacific Ocean Blue (1977) foi publicado pela Caribou (de James Guercio, produtor e colaborador de Zappa, Blood Sweat & Tears, Chicago e Moondog), vendeu razoavelmente mas, uma vez descatalogado, nunca seria convertido para CD. Bambu, o sucessor previsto, esse, nunca sairia das bobines. Naturalmente, um e outro, desde então, inflaccionaram cotações no e-Bay, circularam nos proverbiais “bootlegs” e, inevitavelmente, adquiriram aura de santidade pop. Ouvidos hoje nesta dupla edição, no entanto, fica claro que, se Dennis tinha talento suficiente para não ser condenado a viver à sombra de Brian, ele só se revelava irregularmente: num e noutro álbum (mas, especialmente, em Pacific Ocean Blue), os melhores momentos são aqueles em que as reconhecíveis harmonias vocais dos Beach Boys deslizam para um idioma quase-gospel (houve quem lhe chamasse “California surfer soul”), caso de “River Song”, “Moonshine” e “Rainbows”, ou os outros – “Thoughts Of You”, “Time” – onde parece quererem definir-se os traços do género de canção “cool”-minimal que nos habituámos a associar a Robert Wyatt. Todo o resto, contudo, ou exibe em excesso algumas das menos agradáveis dedadas da época (aqui e ali, suspeita-se, com algum horror, que Dennis Wilson se poderia ter transformado em... Phil Collins) ou são apenas resultado de esboços/jams de estúdio apressadamente convertidos em canções.



Ressuscitado através da magnífica reconstituição ansiosamente aguardada de Smile, em 2004, Brian Wilson regressa agora também com That Lucky Old Sun. A equipa de apoio (e, nos tempos que correm, Wilson continua a necessitar de muito apoio) é a mesma que, desde há vários anos, o acompanha (o devotado fã e membro dos Wondermints, Darian Sahanaja, o fidelíssimo Van Dyke Parks e um pelotão de operacionais de estúdio de quilométricos currículos) e, talvez por isso e porque o efeito-Smile permanece intenso, a sensação que se guarda é a de que Wilson – ou alguém por ele – pretendeu sublinhar a ideia de o seu imenso génio não se ter esgotado nessa viagem de profundidade pela memória. O que resulta é algo de ambivalente: o álbum contém algumas sobreexcelentes canções de colheita “vintage” (e algumas das piores: “Mexican Girl” é indesculpável) mas é impossível não reparar como todo o esforço parece dirigido para edificar um Smile-part II (os “intermezzi” declamados, escritos por Parks, reforçam a vertente conceptual) e não deixar de sentir que, por vezes, Brian Wilson chega a soar como uma – competentíssima – “covers band” de si mesmo.

(2008)

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