18 September 2008

OS FILHOS DE CAGE

Provavelmente ainda haverá quem não tenha reparado a sério como tudo, literalmente tudo, o que aconteceu no mundo das músicas desde 1952 decorre em linha directa dos (apesar de tudo famosos) 4'33", de John Cage, publicamente "apresentados" nesse ano. O que, entre dezenas de outras possíveis consequências, foi uma forma de abrir de par em par as portas do universo musical a todo e qualquer acontecimento sonoro, voluntário ou acidental, deliberado ou espontâneo, "natural" ou "artificial", nada excluindo e tudo fazendo depender da atitude de quem escuta: música ou ruído passavam a ser apenas aquilo que, num determinado momento, se entendia como tal em função das circunstâncias ou expectativas. Já não uma "arte de combinar os sons" ou de "orquestrar o ruído" mas, sim, de os seleccionar, identificar ou bloquear, caso a caso, instante a instante, com o ouvido humano individual como único sintonizador e padrão. O comboio que passa no exterior da minha janela ou a peça de Mozart que, simultaneamente, o rádio difunde passaram a equivaler-se como matéria potencialmente musical (a mim cabe atribuir-lhes ou não essa qualidade) e eventualmente associáveis numa unidade única: a banda sonora irrepetivel daqueles segundos, naquele lugar. Se 4'33" foi, seguramente, o primeiro exemplo de música radicalmente ambiental (os sons do ambiente eram a própria música), a homenagem prestada pela "Time Out", no ano passado, por ocasião da morte de Cage, não podia ser mais adequada: uma banda desenhada em que, interrompendo subitamente um concerto de obras de John Cage, o apresentador anuncia o falecimento deste e, em respeito pela sua memória, solicita ao público um minuto de... ruído.

Obviamente, desde que tudo passou a ser possível, nenhum limite voltou a ser reconhecido, o campo ficou, teórica e praticamente, aberto a todo o tipo de experimentações, projectos e propostas. Do punk à world music, do pós-serialismo ao "noise", do neo-industrialismo ao sampling, ninguém fez senão ecoar uma ideia ("a arte é uma espécie de banco de ensaio onde a vida se experimenta") e uma profecia ("acredito que a utilização do ruído para criar música irá continuar e ampliar-se-à até atingirmos uma música produzida através de instrumentos eléctricos que, para todos os efeitos, colocarão à nossa disposição todos os sons audíveis") de John Cage, em 1937. Sensiblidades, condicionamentos, tiques e preferências culturais acabarão sempre por decidir do que é aceitável, excitante ou insuportável, com a possibilidade adicional de, se submetido a outros ouvidos, o mesmo se apresentar possuidor de caracteríticas exactamente opostas.

É nesse território de indecisões e interrogações que se enquadram estes sete discos. Três deles (1/2 e 3/4, dos Dome, e Or So It Seems, dos Duet Emmo) são a reedição em CD de parte da aventura paralela de Bruce Gilbert e Graham Lewis, dois elementos dos Wire que, durante o prolongado lapso de tempo em que o grupo-base se eclipsou, iniciaram uma trajectória de investigação das técnicas de estúdio e das possibilidades do som sintetizado. Abandonada toda a relação com as estruturas convencionais da canção, ficava uma atmosfera sonora de colagens fantasmáticas, ruídos mecânicos assombrados, vozes desencarnadas e surdas obsessões rítmicas, com enxertos "étnicos" e laivos de psicadelismo minimal. O acento tónico na componente tímbrica, rítmica ou estrutural varia de intensidade de faixa para faixa e de disco para disco mas, tanto na variante Dome como Duet Emmo (um anagrama para a associação Dome e Mute, fruto da participação de Daniel Miller), faz do "modern ennui" um valor estético apreciável. Verdadeiramente intrigante e a exigir audições repetidas é o extenso "To Speak" (incluído no quarto volume Dome, originalmente intitulado Will You Speak This Word), exercício de voo livre sobre o planisfério musical, a prolongar-se em pura abstracção. Uma reflexão inevitável: considerável percentagem da música de dança actual nasceu - directa ou indirectamente - do que aqui se contém.

Não demasiado longe das mesmas coordenadas sonoras viajam os australianos SPK (sigla sucessivamente explicada como Surgical Penis Klinik, System Planning Korporation ou Sozialistisches Patienten Kolektiv...), fundamentalmente, um duo constituído por Graeme Revell e a vocalista Sinan. A parcela da sua discografia agora republicada revela uma concepção que oscila entre o teste de resistência às virtualidades do estúdio convertido em câmara de tortura electroacústica (Leichenschrei e, sobretudo, Information Overload Unit) e uma ideia de "sound painting" desterritorializado que suga para o mesmo espaço os vestígios sonoros de todas as culturas planetárias e as envolve num fluído único de contornos pouco definíveis. Este último é o domínio de Zamia Lehmani, um deslumbrante buraco negro de murmúrios exóticos, preces líricas e pesadelos revestidos a ouro, em equilíbrio instável sobre o estreito fio de comunicação que liga o espaço sideral com a ressonância das catedrais.

Finalmente, The Shutov Assembly, de Brian Eno, é o retorno do ex-Roxy Music ao ambientalismo decorativista da série que o anterior Nerve Net interrompeu. Enquanto nesse excelente álbum do ano passado valia, essencialmente, o entendimento do mundo musical contemporâneo como corpo sonoro orgânico e a dimensão ambiental era apenas uma componente entre muitas outras (techno, house, rock, jazz, impressionismo) gerando um híbrido tão instável quanto rico de potencial, Assembly retoma a feição de aguarela de superfícies, preciosa e texturada, mas, na verdade, sem acrescentar nada de decisivo a toda a linha de trabalhos anteriores que Discreet Music inaugurou em 1975. Retêm-se dez faixas cujo único traço de união é obedecerem a títulos de nove letras e aguarda-se pelo capítulo seguinte que terá tudo a ganhar se sintonizar de novo o sistema nervoso planetário e nele decifrar o código que adivinha o futuro. Ou, como enuncia Ryuichi Sakamoto em Heartbeat, "Break the code and read the message, speak directly to the center".

(1993)

3 comments:

Anonymous said...

A ouvir o Or So It Seems...Não conhecia...Mais um para o baú "cult"...

Anonymous said...

É curioso. Se não soubesse que este álbum foi editado em 83 diria que era um álbum da mais recente editora Mille Plateaux.

Unknown said...

De todos os discos referenciados, o meu preferido é o dos SPK. Grande banda a do Graeme Revell - que depois foi fazer bandas sonoras para Hollywood. O mais fabuloso deles é o "The Insects Musiciians", se bem que "Zamia Lehmani" seja também um disco do outro mundo.
VA