10 September 2008

CURTO-CIRCUITOS



Hector Zazou/Vários - Sahara Blue

Entre os incontáveis tesouros da Library Of Congress, de Washington, acha-se um pouco conhecido registo do pianista Jelly Roll Morton (gravado em 1938 por Alan Lomax) onde este, muito à sua maneira, conta como "inventou" o jazz. E fá-lo explicando que ele provém de Itália (tocando o "Miserere", de Il Trovatore, em versão "hot"), de França (executando uma quadrilha swingada) e de Espanha (ensaiando uma "Paloma" em registo bluesy), necessitando apenas da visão globalizadora de um génio para eclodir. Isto é, ele mesmo, portador de um cartão de visita onde, ao lado do nome real - Ferdinand Joseph La Menthe -, se apresentava como "criador do jazz, blues e swing". Foi a propósito da audição de uma dessas gravações que, em 1971, o compositor contemporâneo Luciano Berio, num texto ("Commentaire au rock") escrito para a "Musique en Jeu", observou que, tanto o jazz como o rock (e a pop em geral), eram, essencialmente, géneros heterogéneos, nascidos no grande caldeirão da música universal e em permanente curto-circuito entre as noções de "alta" e "baixa" cultura. Por outras palavras, entidades musicais construídas sobre os detritos de outras pré-existentes (e ele enumerava-as: blues, charleston, canção ocidental, soul, sea-shanties, hinos religiosos, música isabelina, indiana, árabe...) que, no próprio processo de agregação e integração das suas componentes, desenvolveram procedimentos e estilos próprios. Era, então, relativamente cedo para que Berio pudesse medir inteiramente o alcance das suas palavras. Mas os vinte anos que se seguiram não vieram senão dar-lhe razão.



A verdade é que, pelo meio das mais diversas "fusões", cruzamentos e interferências sonoras de que a chamada "world music" é o derradeiro exemplo, esse movimento de intersecção de áreas musicais continuou a gerar sucessivos híbridos e formas mutantes para os quais é cada vez menos fácil descobrir designações adequadas. Consequência também, afinal, das próprias trajectórias imprevisíveis dos músicos que os produziram, virtualmente oriundos de todos os quadrantes do espectro musical. Sahara Blue, projecto de Hector Zazou, não poderia ser, acerca disto, mais elucidativo.


Arthur Rimbaud

Concebido em co-produção de La Grande Halle de La Villette com a Crammed Records por ocasião do centésimo aniversário da morte do poeta francês Arthur Rimbaud, comemorado há um ano, constitui quase um manifesto, um discurso de balanço sobre o estado do internacionalismo musical contemporâneo. Um pouco na sequência do notável álbum anterior de Zazou - Les Nouvelles Polyphonies Corses - onde, a pretexto da elaboração sobre a raíz da música tradicional da Córsega, convocava um verdadeiro batalhão de executantes dos quatro cantos do mundo, este, agora, toma como ponto de partida a poesia de Rimbaud e, como lema, as palavras de "L'Impossible", bandeira das almas sem pátria: "Le monde n'a pas d'âge. L'humanité se déplace simplement. Vous êtes en Occident mais libre d'habiter dans votre Orient... et d'y habiter bien. Ne soyez pas un vaincu". E é a prática activa dessa liberdade de, em qualquer local, se poder assumir como cidadão de todos os outros que define as estratégias de escolha dos integrantes deste disco, prova indiscutível de como o espírito da poesia habita os lugares e os corpos que decidiu devorar sem cuidar de fronteiras.



Chamados por Zazou compareceram Gérard Depardieu, John Cale, Cheb Khaled, Bill Laswell, Tim Simenon (Bomb The Bass), Anneli Marian Drecker (Bel Canto), David Sylvian, Ryuichi Sakamoto, Barbara Gogan (dos extintos Passions), Sammy Birnbach e Malka Spiegel (Minimal Compact), Steve Shehan, Keith Leblanc, Yuka Fujii, Nabil Khalidi, Ketema Mekonn, Richard Bohringer e ainda outros tantos. A resultante é a declinação da visão alucinada do filho de Charleville em todos os modos e idiomas, a sua projecção para a atmosfera sonora de um universo onde as palavras ressoam e se reflectem em múltiplos planos e tonalidades e "les sauvages qui dansent sans cesse la fête de la nuit" descobrem, cem anos mais tarde, outros territórios para inundar de luz. Não faz de todo sentido falar de ambientalismos, alusões "étnicas", malabarismos tecnológicos. Sahara Blue é já um novo corpo, um organismo vivo poliglota mas possuidor de uma alma única, uma ópera involuntária, interiormente ancorada na difusa biografia de uma errância de iluminações.

(1992)

2 comments:

Anonymous said...

Não queria aborrecer, mas acho que alguém devia vir aqui dizer que este disco é, de facto, sublime...

Ada said...

Eu nem conheço o disco, mas Rimbaud era poeta, restrito ao francês, que traduzido..., mas a música, a batida dos "tambores" é a linguagem universal. Gosto bastante da imagem da música iluminando todas as faces de uma noite-dia-noite. Posso estar falando besteira, mas todos os escritores não procuram como fim a música das palavras?