11 June 2008

UM “IF” É SEMPRE DEMAIS



Silver Jews - Lookout Mountain, Lookout Sea

Concentrem-se nestas palavras de David Berman à “Pitchfork”: “Uma das regras que estabeleci para este álbum foi a de que não deveriam existir canções que não tivessem qualquer significado ou que usassem uma linguagem oblíqua. Cada uma é autosuficiente, começa num lugar a decifrar onde determinadas coisas aconteceram, e é definida por um certo espírito de ressaca. O segundo lado é mais feliz mas também mais pragmático. Como se tivesse celebrado um acordo de paz com um mundo corrupto. Existe um arco global em que, no primeiro lado, se situa o problema e, no segundo, a solução”. Todas são importantes mas é às primeiras – “uma das regras que estabeleci” – que há que prestar atenção: Berman, o novo Berman que “celebra acordos de paz” com o mundo, não desiste (exactamente como o “antigo”, em conflito permanente com o universo desordenado que lhe habitava o espírito) de formular normas apertadas de escrita. Mais ou menos disciplinado, o cérebro dele não prescinde de uma rotina mínima de sobrevivência ou, como canta em “Suffering Jukebox”, “You got Tenessee tendencies and chemical dependencies, you make the same old jokes and malaprops on cue”. As “Tenessee tendencies” persistem, as “chemical dependencies” parecem domesticadas, mas não deixa de haver uma ordem interior essencial a preservar.



Prestem, agora, atenção ao que ele diz a seguir: “Todos os meus álbuns anteriores terminavam com uma morte ou um adeus. Este termina com uma canção cantada por mim e pela Cassie que é uma espécie de canção de amor ‘country’ urbana. (...) Tanglewood Numbers foi a minha primeira tentativa de documentar o que poderia ser a vida após uma travessia do inferno”. Ou seja, esta será, sem dúvida, a segunda mas, aqui, as palavras-chave são “uma espécie de canção de amor ‘country’ urbana”. Poderíamos, sem grande problema, desvalorizar a contradição “’country’ urbana” – e ela está por algum motivo – mas é difícil não tropeçar na “espécie de canção de amor”. Em particular, se lhe escutarmos bem o refrão: “We could be looking for the same thing if you’re looking for someone, we could belong to each other if you’re not seeing anyone”. Há ali dois “if” e um “if” é já sempre demais. Em síntese, o inferno poderá ter ficado para trás mas não é seguro, nunca é seguro, que o paraíso (seja isso o que for) se encontre, ali, ao alcance da mão. O que fica, então?



Um álbum dos Silver Jews tão “feliz” quanto David Berman o consegue conceber (e ele mesmo se irrita com a sua obsessão pela fixação de uma identidade: “Odeio imenso o facto de ter uma consciência instintiva, primitiva, da ‘marca’, do que, em certos aspectos formais, deverão ser sempre os Silver Jews. Quaisquer desvios torná-la-iam sempre demasiado nebulosa”), que deambula por territórios reconhecíveis do cenário musical norte-americano – Lou Reed e os Velvet Underground em “San Francisco B.C.”, os Byrds em “Suffering Jukebox”, até os R.E.M. em “What Is Not But Could Be If” (outro “if”...) e, apesar de tudo, muito espectro de country-“noir” –, investe mais na narrativa escorreita de “short story” do que nos instantâneos subjectivos e impressionistas (“Aloysius, Bluegrass Drummer” é o melhor exemplo) e, por entre melodias nem sempre memoráveis, semeia aforismos e observações (“Romance is the douche of the bourgeoisie”, “she had become a vocal martyr in the vegan press” ou “I take decaf coffee, two sugars and one cream, I don’t see the use in staying up to watch TV” servem como boas amostras) que autorizam a suspeita de que David Berman ainda não se terá deixado submergir integralmente pela beatitude dos justos.



(2008)

6 comments:

Anonymous said...

Thumbs up.
Apesar de adorar os SJ, não consigo atinar com este disco.

Anonymous said...

Tb já não me parecem tão essenciais como inicialmente. Já o anterior não fez tremer a terra. Mas já vi tanto músico/poeta renascer depois de um ou outro passo em falso (o que nem será bem o caso), que continuo a acreditar no David Berman. Outro grande disco nascerá. Tenhamos fé.

menina alice said...

Tenessee tendencies?...

João Lisboa said...

"Tenessee tendencies?..."

As in "country", "deep dark America" e tal, suponho.

menina alice said...

Got it. Sempre grata por me arrancares às trevas da ignorância, mee too.

João Lisboa said...

"mee too"

:)