OS GESTOS NECESSÁRIOS
Vinil – Gravações e Capas de Discos de Artistas,
Museu de Serralves (10 de Maio a 13 de Julho)
Museu de Serralves (10 de Maio a 13 de Julho)
Originalmente publicado em 1986, desde então transformado em obra de referência e, há três anos, reeditado pela Yale University Press, The Recording Angel, de Evan Eisenberg, analisa o modo como as tecnologias de gravação sonora transformaram a cultura do século XX e a forma de nos relacionarmos com ela. A certo ponto, Eisenberg afirma: “Uma vez mais, uma invenção mecânica respondera à necessidade do capitalismo de recriar toda a vida à sua imagem. A catedral da cultura convertera-se num supermercado. Éramos todos Próspero, capazes de invocar músicos invisíveis que tocavam e cantavam para o nosso prazer. (...) O ouvinte de discos é um filho do supermercado. A sua forma de se exprimir é quase inteiramente uma questão de seleccionar entre diversas embalagens que outros conceberam. E ele pensa que estas embalagens esgotaram todas as possibilidades”.
capa de Robert Longo para The Ascension, Glenn Branca
É, justamente, o invólucro externo dessas embalagens que constitui o objecto de estudo, investigação e devoção da colecção Vinil – Gravações e Capas de Discos de Artistas, em exibição no Museu de Serralves. E, de certa maneira, contrariando o ponto de vista de Eisenberg, Guy Schraenen (o coleccionador e curador da exposição), na introdução ao catálogo, defende a tese segundo a qual a maioria destas peças se integra no movimento que, desde o final dos aos 50, “com o surgimento da arte ‘inter-media’ deu origem a uma mudança radical na concepção e na recepção das obras de arte: performances, instalações, happenings, trabalhos de vídeo, filmes de artistas e ‘soundworks’ proliferaram”, enumerando todos os movimentos artístcos – Cobra, Fluxus, arte conceptual, Letrismo, “sound poetry” e Novo Realismo – que recorreram aos discos de vinil e utilizaram as suas capas como suporte para criações visuais “directamente relacionadas com o conteúdo dos discos, numa justaposição de som e imagem”. Se a deambulação pelas salas de Serralves face a face com exemplares originais de capas como a célebre “da banana” de Warhol para os Velvet Underground, a do “álbum branco” concebida por Richard Hamilton para os Beatles, as de Gerhard Richter ou Raymond Pettibon para os Black Flag e Sonic Youth e inúmeras outras para álbuns de “spoken word”, minimalistas e experimentalistas vários, peças sonoras e/ou visuais de Duchamp, Beuys, Hans Arp, Burroughs, Hermann Nitsch, Orson Welles ou Satie constitui o verdadeiro encontro imediato com a lenda, não menos fascinante é folhear o catálogo e, em especial, o glossário.
capa de Raymond Pettitbon para Goo, Sonic Youth
Aí, logo à terceira página, se traça uma linha de fronteira (“Compact disc: (...) o seu formato não permite as relações subtis e complexas entre aspectos visuais sonoros que eram uma característica específica dos discos de vinil produzidos por artistas visuais apesar das numerosas tentativas para superar esta dificuldade”) se recenseiam fetichismos (“a relação táctil entre indivíduo e objecto, o som que é próprio da escuta de um disco de vinil, os gestos necessários”), se historiam os passos desde o “phonoautograph” de Leon Scott (1858) até ao instante em que “a história parou” (“1978: a Philips anuncia a invenção do compact disc”), se inventariam casos particulares (o “flexidisc”, o “picture disc”, o “disco-objecto”) e, a pretexto do estabelecimento de uma “paternidade” (é o título da própria entrada no glossário), se desenha algo como uma imaginária ordem de precedência entre artes visuais e arte musical: “Do final dos anos 50 em diante, o desenvolvimento da arte contemporânea e das experiências musicais, tal como as novas técnicas de gravação, deram aos artistas o ímpeto para explorar novas vias. Enquanto para os músicos esta experimentação se situava firmemente no interior da tradição musical, aos artistas visuais, livres de constrangimentos, permitiu-lhes ignorar todas a regras”.
(2008)
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