A MÁQUINA DO TEMPO
A Casa da Música poderá ter o perfil de uma nave espacial – e, enquanto nos perdemos no seu interior, a revisão mental de duas ou três sequências do 2001, de Kubrick, é quase compulsiva – mas, no final da semana passada, durante o concerto dos Young Marble Giants, transformou-se, na verdade, em máquina do tempo. Que nos transportou não exactamente a 1980 (data de edição de Colossal Youth, o único álbum do grupo de Cardiff) mas, muito mais atrás, àquele instante fundador em que, no caldo de cultura primordial da história imaterial do planeta, se geraram as moléculas iniciais de onde se constituiria a música tal como os humanos a viriam a praticar. Um microsegundo antes e seria o silêncio: melodias a um passo da inexistência, harmonia como exercícios de pura abstracção geométrica, sem lápis, sem régua e sem papel, e uma pulsação rítmica cuja finalidade é apenas conservar os sinais vitais de cada frágil organismo sonoro que, mal emerge, logo se extingue. Sobrenaturalmente idêntico ao que se escuta na colossal e irrepetível gravação mas, se calhar, por efeito de condicionamento da arquitectura da cápsula, capaz de nos deixar sem fôlego perante a intrigante sensação de, pela primeira vez, o estarmos a testemunhar.
Logo a seguir, na noite de “clubbing”, os Vampire Weekend fizeram todo um peculiar sentido: o grau de complexidade da sua pop situa-se só dois ou três degraus acima do diagrama-YMG (tal como aconteceu, aliás, com todas as bandas de oitenta que, sobre as peças do Lego de Alison Statton e dos irmãos Moxham, recompuseram o vocabulário que o punk reduzira a escombros) mas, da imensamente falsa ingenuidade de fortuitos descobridores das virtualidades do matrimónio da pop com uma visão de operador turístico da música africana, abre-se uma porta para algo de absolutamente necessário e urgente: a perda definitiva do pesado lastro de “etnicidade” e – da mesma forma que acontece com os Gogol Bordello, Beirut ou Chicha Libre – a sua gloriosa transfiguração em pura matéria sonora destinada a processamento segundo a indiferenciada e descomprometida lógica-pop. O que Presley ou os Stones realizaram sobre os blues ou a country, realizam-no agora eles sobre a música de imaginários Balcãs, Peru ou Nigéria e, no caso dos Vampire Weekend, como pretexto para uma escrita de canções de irónica erudição, poder de engate instantâneo e só aparentemente (como exigem os melhores tratados) frívola e ligeira. Que a única “autenticidade” detectável resida na sua indisfarçável condição de betos da Ivy League apenas acrescenta sal e pimenta à coisa.
(2008)
5 comments:
Mesmo que só fosse criada actualmente, é impressionante verificar como a música dos YMG seria a mais radical, arrojada e visionária do ano. Assim, de repente, talvez só o «Rock Bottom» e o «Starsailor» provocassem o mesmo choque futurista...
Os Vampiros, hei-de vê-los no Optimus Alive em Algés, para o tira-teimas. Mas do cd gosto mto.
Pena em não ter ido ver os YMG.
Bem... hoje comprei um vinil dos Microdisney. Não é a mesma coisa (não é mesmo), mas vai ter que servir.
Chicha Libre?...
"Chicha Libre?..."
Não andas a fazer os TPC...
http://lishbuna.blogspot.com/2008/05/junk-food-gourmet-chicha-libre-sonido.html
Oooopsie daisy! Já vou reparar a falta, logo a seguir ao Darjeeling. ;)
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