07 May 2008

PEEP-SHOW SICK



Pulp - This Is Hardcore

É verdade que os "Glory Days" de Bruce Springsteen já não eram exactamente a imagem de alguém euforicamente embriagado com a vida. Mas o tema homónimo dos Pulp no novo This Is Hardcore, esse, é positivamente esquálido: "Come and play the tunes of glory, raise our voice in celebration of the days that we have wasted in the cafe in the station and learn the meaning of existence in fortnightly instalments". A personagem (Jarvis Cocker, ele mesmo?) confessa que "my face is unappealing and my thoughts are unoriginal, I did experiments with substances but all it did was make me ill", o cenário onde nos convida a partilhar a sua "idade de ouro" é um miserável "single room apartment" e, depois de observar casualmente "we were brought up in the Space Race, now they expect you to clean toilets", conclui sardonicamente "Yeah, we'd love to hear your story just as long as it tells us where we are - that where we are is where we're meant to be". Meia dúzia de frases antes, aliás, já o terreno tinha ficado irremediavelmente minado: "I can't see into the future but at least I can use the heater, oh it doesn't get much better than this 'cause this is how we live our glory days". Pois é, não há dúvida, isto é mesmo "hardcore".



À primeira vista, poderia parecer uma razoável ilustração do velho cânone "urbano-depressivo" dos anos 80 mas, afinal, é só deprimente. Porque (e, desde His'n'Hers, essa sempre foi a coroa de glória dos Pulp) a música que acompanha essa descrição fotográfica do estado de espírito terminalmente doente de uma qualquer geração X, Y ou Z é uma celebração de pop vibrante e festiva a contrastar acidamente com a desolação do quadro. Por outras palavras, um magnífico exemplo da pop enquanto teatro de costumes, pretexto ideal para "sitcoms" absurdas de três minutos onde a "gente comum" e as suas patéticas tragédias são impiedosamente encenadas numa espécie de "Peep-Show Sick". E que, enquanto teatro que, na verdade, é (tanto aqui, em This Is Hardcore, como no anterior Different Class), obriga necessariamente a reavaliar a componente musical enquanto mera banda sonora, puro artifício cenográfico para a edificação destas imundas miniaturas onde desfilam a frio os pequenos horrores quotidianos dos cidadãos do "mundo moderno".



É por isso que os portentosos coros, teclados e guitarras de "The Fear" cruzados em diagonal com um pseudo-Theremin uivante não poderiam ser senão assim para emoldurar uma "music from a bachelor's den, the sound of loneliness turned up to ten, a horror soundtrack from a stagnant water-bed, the sound of someone losing the plot, making out they're okay when they're not" com aviso incluido de "you're gonna like it but not a lot". Ou que o morno quase-"easy listening" de "Dishes" constitui o perfeitíssimo "backdrop" para a embaraçosa confissão (esta, supõe-se, realmente autobiográfica) "I am not Jesus though I have the same initials, I am the man who stays home and does the dishes", antecâmara de um "vaudeville" de subúrbio com os seus inevitáveis episódios de ignomínia e humilhação.



Se Lou Reed dizia "I'll be your mirror", então os Pulp são os proprietários da sala de espelhos deformantes da Feira Popular. Daí que Jarvis Cocker (Ray Davies obsceno dos anos 90, "playwright" e actor ilustre mais do que simplesmente "songwriter") e a sua pequena trupe de músicos não resistam a desdobrar-se neste infernal jogo de sombras privado: em "Party Hard" ele é um David Bowie grotesco e coberto de vómito, em "Help The Aged" chega a ser quase convincente enquanto irrisório paladino da terceira idade, "Seductive Barry" é Joy Division de papelão e lantejoulas em contexto de opereta deliberadamente errado e "Sylvia" veste as roupagens do mais rançoso "ballad rock" à maneira dos Foreigner (sim, sim, esses). Finalmente, "This Is Hardcore" - o tema título -, conduz o vinagre de Elvis Costello à dimensão de "grand guignol" pornográfico onde, no final de um metafórico "peep show" propriamente dito, se pergunta com absoluta naturalidade: "Oh what a hell of a show, but what I want to know: what exactly do you do for an encore?". Nem eu o diria melhor. (1998)

2 comments:

Anonymous said...

O saudoso programa do João Baião.

Táxi Pluvioso said...

Ainda há pouco estive a ver o vídeo de "Disco 2000". Bela história de desencontro, como são hoje as relações humanas.