18 May 2008

A ILUSÃO DE DEUS *



Dificilmente poderá produzir hoje, em Portugal, o mesmo efeito que teria no tempo em que o eco das vociferações do bispo de Braga a propósito da exibição de O Império dos Sentidos num canal de televisão ainda fazia manchetes nos jornais. Mas – como bem o demonstram os actuais conflitos do Médio Oriente e Afeganistão – a eterna “questão religiosa” está muito longe de encerrada e It’s All In Your Head FM, que o colectivo norte-americano de guerrilha cultural, Negativland, virá apresentar a Portugal terá, certamente, potencial para provocar algumas ondas residuais. “Colagem-documentário” sob a forma de emissão de rádio simulada, a sua finalidade declarada é, segundo Don Joyce, desmontar aquela mesma “ilusão de deus” que camaradas de armas como Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris ou Christopher Hitchens, militante e racionalmente, combatem.

Gostava que me desse uma ideia geral do que poderemos esperar de It’s All In Your Head FM.
O espectáculo chama-se It’s All In Your Head FM e, como tal, o que apresentamos em palco é algo como a simulação de um programa de rádio. O tema abordado é a religião (e a fé), particularmente, em relação com o modo o cérebro e a consciência funcionam. Na verdade, temos, aqui em Berkeley, um programa semanal de rádio verdadeiro, Over The Edge, a partir do qual este espectáculo nasceu. O que se vê em palco, é muito idêntico ao programa real.

Recorrem também aos vossos procedimentos habituais de colagem, mistura e distorção de informação de diversas origens, “found sounds”?...
Sim, utilizamos bastante equipamento e realizamos todo esse processamento sonoro, ao vivo. Basicamente, chamar-lhe-ia uma colagem-documentário dado que grande parte do material sobre que trabalhamos são “found sounds” retirados de documentários dos media – rádio e televisão – que editamos, recompomos e transformamos.


Tem uma estrutura fixa definida ou inclui alguma margem de improvisação de espectáculo para espectáculo?
Um pouco. São duas horas com um intervalo a meio, do ponto de vista da duração é bastante rigoroso. Mas os diversos elementos podem aparecer integrados em sequências diferentes. Está organizado em secções distintas mas, no interior de cada uma, os materiais podem ser rearranjados, a mistura é realizada de uma forma muito espontânea.

Porquê abordar o tema da religião? Costumamos dizer que a prostituição é a mais antiga profissão do mundo mas, na verdade, as de sacerdote ou feiticeiro – porta-vozes de supostas entidades superiores – são bem capazes de ser tão ou mais antigas, a religião sempre esteve presente no universo mental e cultural do homo-sapiens...
Bela pergunta! É possível que a Europa esteja bastante mais secularizada do que a América, que vocês aí já tenham compreendido quanto a doutrina e o folclore religiosos são irracionais, embora talvez faltem ainda um ou dois séculos para que sejam definitivamente remetidos para o domínio da pura superstição. Mas, nos EUA, nestes últimos anos, a religião tornou-se um tópico extremamente presente nos media e, curiosamente, de um ponto de vista muito crítico. Subitamente, parece existir, pela primeira vez, uma vontade e uma nova liberdade para criticar a religião – todo o sistema da fé no “sobrenatural”, os problemas a que dá origem e que condicionam tudo na vida individual e na vida política – sem se ser amaldiçoado pela população em geral. Especialmente, devido ao papel tão decisivo que ela tem desempenhado nas questões do Médio Oriente, as pessoas começaram a reparar mais nos efeitos perniciosos da religião que sempre existiram mas que, agora, são muito mais evidentes. Nós participamos apenas nisso de uma forma que pretendemos que seja bastante mais sofisticada do que apenas “dizer mal de deus”, desejamos aprofundar todo o processo mental da fé. É possível que, em certa medida, estejamos a pregar aos convertidos, mas espero que o façamos de um modo interessante, diferente do que já foi feito.



Em The God Delusion, no entanto, Richard Dawkins refere uma sondagem da Gallup, de 1999, segundo a qual, entre 95 e 79% dos americanos votariam em candidaturas a cargos públicos de negros, mulheres, gays e de diversas confissões religiosas mas só 49% aceitariam um ateu declarado. Um facto que, segundo ele, coloca o facto de se ser ateu nos EUA numa situação equiparável à que a comunidade homossexual vivia há cinquenta anos e o conduz a apelar que, tal como aconteceu com o movimento gay, todos os ateus clandestinos que são figuras públicas “saiam do armário”...
É verdade, o ateísmo continua a ser um palavrão muito feio aqui na América embora eu acredite que muitos dos nossos políticos, intimamente, não levam a religião muito a sério apesar de a afirmarem publicamente. Existe imensa hipocrisia e um enorme medo de confessarem o que, na realidade, pensam devido às consequências sociais que isso poderia ter.



No press-release do vosso espectáculo afirmam que o vosso “programa de rádio” investiga a ideia de que “talvez não exista nenhum deus sobrenatural por trás destas religiões”. A questão aqui é o “talvez”: o vosso ponto de vista é, então, ateu ou agnóstico?
Não estou muito certo de por que motivo aparece aí esse “talvez”. Funcionamos em colectivo e, por vezes, é necessário matizar um pouco as coisas... Pessoalmente, não tenho a menor dúvida de que não existe nada de sobrenatural no universo. E só mudarei de opinião quando me apresentarem alguma prova disso. O que nunca aconteceu. Por outro lado, é fascinante reparar como o sobrenatural pode obcecar as pessoas. Basta olhar para a nossa ficção e para o mundo do entretenimento. Não o compreendo, é um mistério para mim, mas existe.


Outro aspecto importante da actividade dos Negativland tem sido, desde o início e, em particular, com o “episódio U2”, o vosso envolvimento com a questão dos direitos de autor que teve como consequência a vossa participação no processo que conduziu à criação dos Creative Commons. Como encaram, hoje – com todo o infinito universo de possibilidades de acesso “livre” a praticamente todas as obras que a Internet abriu – esta questão cada vez mais crucial?
Sem dúvida que a Internet mudou imenso tudo. Mas a nossa posição continua a ser exactamente a mesma: para uma finalidade artística, deve ser possível usar qualquer obra de qualquer artista sem ser necessário pedir-lhe autorização. E, pior ainda, pagar-lhe pelo direito de o fazer. Todas as artes se construíram a partir de materiais previamente existentes, reciclados e convertidos em novos objectos o que não deverá ser inibido pelo “copyright”. Mas as leis, desde a história dos U2, não mudaram! O que mudou foi a atmosfera em que tudo acontece, principalmente por efeito da Internet. Ninguém a controla, ninguém é proprietário dela, numa boa pesquisa, podemos chegar a tudo. Mesmo que nos obriguem a pagar num lado, podemos encontrar o mesmo, gratuitamente, noutro. O que me parece óptimo, essa democratização da arte, toda a gente que tenha um computador conhece o significado de “cut and paste” que começou por ser um termo utilizado em arte. Nos EUA, existe a “Common Law” que defende que, quando um número importante de pessoas começa a praticar massivamente alguma coisa, ainda que isso seja ilegal, passa a ser socialmente aceitável. O que, de certo modo, com a Internet, subverteu completamente as intenções do “copyright”. Claro que isso coloca o problema das compensações devidas. Ainda ninguém apresentou uma solução satisfatória...


Mark Hosler

No vosso caso concreto, como lidam com isso? Em quinze minutos, posso fazer o download integral da vossa discografia sem que vocês ganhem um cêntimo com isso...
(risos) Como lhe disse, não sei... durante a maior parte do tempo, estamos praticamente tesos!... não vendemos nada que se pareça com o que acontecia nos anos 80 e 90. Uma hipótese poderia ser uma “flat rate” paga universalmente pelo acesso à Internet que reverteria para a produção cultural. Não seria impossível identificar sempre que algo nosso fosse dowloadado e, desse vasto “pool”, garantir que uma percentagem nos fosse atribuída. Tal como acontece quando uma música é difundida pela rádio ou pela televisão. Pode ser que exista uma solução melhor mas ainda ninguém a apresentou. Claro que isto põe problemas de privacidade...

Exacto: não será tão importante que alguém possa saber se eu me apropriei ou não da vossa discografia mas já é muito importante que alguém possa também identificar e registar toda a minha actividade na Internet...
E não lhe parece que, se o quiserem fazer, o farão, de qualquer modo?...

Ah sim, claro que sim!...
Andam atrás de si, não duvide!... (risos) A segurança na Internet decorre dos números: são muitos milhares de milhões. As hipóteses de ser “apanhado” são praticamente iguais às de ser atingido por um raio. As probabilidades de cair nas garras do Big Brother são ínfimas a menos que andem atrás de si por alguma razão especial. E, nesse caso, apanhá-lo-ão sempre.

* (versão integral da entrevista publicada no "Cartaz"/"Expresso" de 10.05.08)

(2008)

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