O COLECCIONADOR
“17 de Setembro de 2001; 6.00am: Céu limpo e azul pálido com pequenas núvens brancas, no pátio um ar gélido, um cigarro e uma chávena de chá. Passam aviões, lá no alto. Os miúdos ainda atiram com a comida um ao outro. Continuo a sentir a mesma ansiedade, surda e venenosa, no estômago”. É uma muitas das entradas de Nick Cave nos seus “Weather Diaries” que, com inúmeros outros items da sua memorabilia privada por ele obsessivamente reunidos e coleccionados – caixas com cabelo humano, ossos de pássaros, imagens de santos, anjos e pin-ups, colagens, cadernos de notas, livros, postais, posters, manuscitos de letras para canções, listas de compras –, no ano passado, a galeria do Arts Centre, de Melbourne, exibiu na exposição “Nick Cave: The Exhibition” e, agora, ocupam as páginas do livro/catálogo Nick Cave Stories Told in Four Chapters (Featuring The Nick Cave Collection). É inevitável ficar-se com a ideia de que, afinal, contra todas as expectativas, Cave tem um espírito extremamente organizado e que, eventualmente, isso se comunicará ao seu processo de composição. Será verdade?
“Não estou muito certo de que tenha um espírito organizado. Mas preciso de o ter. Tomar notas, fazer listas, registar datas, foram sempre uma parte importantíssima do meu processo de escrita. Carimbos, adoro carimbos, a minha mulher comprou-me recentemente um lindíssimo. Tudo isso, apontar ideias, diários… não escrevo diários acerca do que fiz hoje ou do que de deverei fazer amanhã mas pratico uma certa escrita periférica acerca das diversas coisas que vão acontecendo. Os meus “Weather Diaries”, por exemplo, que mantive, em Londres, durante cerca de um ano, onde ia registando como tinha sido o tempo em cada dia. Sempre tive uma espécie de abordagem matemática à escrita da música e dos textos”.
Observo-lhe que, mesmo para o filho de uma bibliotecária e de um professor de Literatura Inglesa e Matemática, uma coisa é usar todos esses diários e bloco-notas, outra é guardá-los e coleccioná-los… ”Sempre encarei tudo isso como obras de arte, em si mesmas. Passei por uma escola de Belas Artes, aquilo que, no fundo, desejava ser era pintor e trabalhar em artes visuais. Mas falhei essa tentativa e acabei por me ver numa banda [The Boys Next Door, futuros Birthday Party], que, na altura, até era um projecto muito lateral. A banda, no entanto, foi continuando a existir e, realmente por acidente, dei comigo a fazer música. Na minha escrita, o elemento visual foi sempre muito importante. Por isso, fui guardando essa merda toda. Sempre que me mudo de um lugar para outro, limpo a secretária e atiro tudo para dentro de caixotes que arrumo algures. Quando me apareceram esses tipos de Melbourne a perguntar se podiam ter acesso a essa tralha, disse-lhes que sim, tenho toneladas disso, podem levá-la… há lá não apenas dez versões de “The Mercy Seat” mas também a minha ficha dentária!...”
E não, garante ele, as marcas dessa passada vocação inicial não o converteram em pintor oculto com obra confidencial que, um dia, também poderia vir a ser revelada: “Não, não pinto. Era demasiado difícil… esticar as telas. (risos) Quando, no final de um ano de Belas-Artes, me puseram na rua, fiquei furioso. O mais divertido, soube-o hoje mesmo, é que, agora, essa mesma universidade me vai oferecer um doutoramento honoris causa… mas não é em Belas-Artes, não sei bem em que é, acho que é em Direito ou uma coisa assim…” Só se for por causa dos seus inevitáveis fatos completos de risca branca fininha, ao melhor estilo de advogado “outlaw” em cenário clássico de “western”...
(2008)
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