(duas repescagens geradas a partir daqui)
A MÁQUINA ANALÍTICA
Em 1842, Lady Ada Lovelace (filha de Lord Byron), entusiasmada com o enorme potencial da "máquina analítica" — precursora dos futuros computadores — que o seu amigo Charles Babbage concebera, escrevia que ela "poderia compor músicas elaboradas e científicas em qualquer grau de complexidade e extensão" advertindo, porém, que "a máquina analítica não tem quaisquer pretensões de originar coisa alguma. Pode executar seja o que for que saibamos mandá-la fazer". Cento e tal anos mais tarde, em entrevista à "Wired" de 1995, Brian Eno prolongava a profecia de Lady Ada sonhando com sistemas de software que fossem capazes de "criar" mais música "original" de Shostakovich, de Brahms ou de... Brian Eno. Ou até de responder a encomendas do tipo "Precisava de música para o meu jantar. Gosto do 'Canon' de Pachelbel, de Joni Mitchell e de Miles Davis. Pode-me confeccionar três horas disso?". A verdade é que tanto Lady Ada como Brian Eno não enxergaram muito longe. Se a primeira ainda tem desculpa, já Eno deveria ter sido capaz de perceber que, há sete anos, estava apenas a profetizar... o presente e o futuro imediato: sem qualquer necessidade de máquinas, apenas armados de um talento natural para o pastiche e contando com a memória curta do público, uma legião de músicos pop tem-se entregue à exclusiva missão de reciclar o passado sem a menor preocupação de lhe incutir o mais ligeiro desvio, ponto de vista diferente ou rasteira transgressão. Evidentemente, nunca em nenhuma época, alguém criou a partir do vazio. Mas, no processo de criação (e não de simples reprodução), existiu sempre uma espécie de espelho deformante individual que, quando aplicado à memória e à herança cultural, gerou imagens diferentes a partir dos códigos do passado. Será que, agora, nos teremos de contentar com 'máquinas analíticas' de carne e osso? (2002)
A HISTÓRIA PELO CACHAÇO
O primeiro disco que Quentin Tarantino comprou foi da Partridge Family e, em entrevista à "Rolling Stone", confessa que ainda hoje o ouve. Musicalmente eclético como é, após uma posterior paixão pela soul, foi a sua primeira namorada que lhe abriu os ouvidos para Bob Dylan. Foi essa, diz ele, a música "that made me take a left turn". E acrescenta: "De repente, dei comigo a pensar: quero ser para o cinema o que Bob Dylan foi para a música. Dylan transformou-se praticamente no herói que eu desejava emular num meio diferente. Ainda é esse o objectivo que eu persigo. Não sei se o conseguirei, não sei se lá irei chegar, mas é com isso que sonho". Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Jackie Brown e, agora, o portentoso Kill Bill dão bem conta de que, tal como Dylan o havia feito e com panache em nada inferior a ele, Tarantino procedeu à completa digestão das referências e géneros da cultura popular audiovisual do século XX e não se limitou a ficar por aí: após o processo de assimilação, regurgitou-as a todas numa imprevisível e assombrosa configuração que reinventa de novo o mundo das imagens e dos sons a partir dos velhos materiais. A banda sonora de Kill Bill, a esse respeito, não poderia ser mais eloquente: sôfrega devoradora da ementa pop de todas as épocas com o saudável lixo incluido, acaba por ser, como resultado final, uma embevecida homenagem ao mestre Morricone daquele tempo em que este tinha mais que fazer do que gravar álbuns lamentáveis com Dulce Pontes. Seria, pois, uma óptima ideia que, assim como Quentin Tarantino se inspirou em Bob Dylan para aceder a uma outra visão do cinema, o círculo agora se fechasse e a pop, a partir de Tarantino, aprendesse a lição: referências todos têm, a criação nunca é amnésica, mas o que verdadeiramente importa é não reproduzir infinitamente os estereótipos do passado em sucessivas "new waves of new waves of new waves". Quem, como Tarantino, seja capaz de agarrar a história da pop pelo cachaço, aplicar-lhe uma valente sova e ver o que daí sairá é que está realmente a fazer falta. (2003)
6 comments:
Platitudes:
Toda a linguagem tem uma gramática.
Toda a gramática é convenção, é como é porque a história a fez assim, como podia tê-la feito de outro modo: porque raio “chove ele”, em francês?
Toda a gramática tem secções mais estáveis temporalmente, como a sintaxe, e secções mais atreitas a captar o ar do tempo, como a estilística. Chamemos paradigma à convenção concreta que vigora num tempo histórico particular.
Em cada época, os que criam fazem-no nos limites de um paradigma que dá testemunho do seu tempo e, em todo o tempo, a esmagadora maioria do que se faz é mera aplicação, mais ou menos virtuosa, desse paradigma.
Contudo, toda a arte que, a posteriori, se constactou ter sido realmente relevante, foi investigação sobre os meios expressivos da sua linguagem, cujo resultado se traduziu numa alteração do paradigma vigente (no mínimo) dando assim testemunho de um novo tempo.
Isto porque os tempos mudam e os paradigmas entram em crise (nota-se quando se percebe que o que se faz dá testemunho de um tempo que é já passado, por muito que o que se vai fazendo mantenha os favores do público, o qual para esta história é irrelevante, como sempre), pelo que alguns,(normalmente poucos), se vêem compelidos a “esticar” os limites do paradigma, (muitas vezes sem que ninguém repare). Se esses poucos tiverem muitos discípulos, quando se dá por isso o paradigma “rompeu” e instaurou-se um novo. Quase sempre, a alteração é apenas estílistica (o que já é muito) mas em certas épocas (raras) as mudanças chegam a alterar os alicerces sintácticos.
É pertinente um paralelo com a “ciência normal “ versus “as “revoluções científicas” do Kuhn.
No meu ramo é habitual chamar “academismo” a essa persistência de um paradigma anterior, num tempo que não é já o seu. Academismo porque as escolas só podem, obviamente, ensinar o passado, nunca o futuro, ou sequer o presente que normalmente está a ser feito à margem das ditas.
Cá está a resposta com muitas linhas que não te dei quando me perguntaste como distinguir a verdadeira inovação, da mera fraude: uma cena é relevante quando comporta verdadeira investigação de novas possibilidades expressivas da linguagem e o resultado é susceptível de dar testemunho do tempo que passa (nem que seja o testemunho da sua fealdade). Se não, é circo, fantochada, detectável a olho/ouvido nu, desde que o dito esteja treinado. O resto é “arte normal” necessária para alimentar o público e providenciar o almoço de quem a faz.
Vê a esta luz toda a fase do PCR em que o programa consiste numa apropriação pela escultura dos meios materiais e da “iconografia” da construção civil, dando testemunho de quanto esse tipo de imagens nos rodeiam sufocantemente. Reunidas as duas condicões supra, não é fraude. O público que se foda que, coitado, está agora a começar (o mais instruido) a conseguir apreciar o que se fez há exactamente 100 anos. Pronto.
Thanx. Quer-me parecer que vou apegreidar isto de comentário para post convidado. Queres sugerir imagem acompanhante? Como queres assinar?
Lady Ada Lovelace avó da Linda ou estarei a fazer confusão?
Tu drogas-te, certo?
São banalidades, pá.
Mas, se insistes, convida lá o post. Corrige o 1º "porque" que é um "por que" e tira o "c" de constatar. Mete o PCR por extenso e acrescenta o seguinte: P.S. "Esta porra não é uma ciência exacta. Podia argumentar-se que essa fase da a obra de Pedro Cabrita Reis é, ainda, academismo do século XX, directamente filiada na "regra sintática" da descontextualização, instaurada pelo Dadaísmo. Vista assim, seria contemporânea mais pelo lado temático - a letra - do que pelo (sempre mais importante) lado plástico" - a música."
Assina com a mui esclarecedora sigla "VG".
Estas cenas ainda vão acabar por te custar uns cafezinhos, ai vão, vão...
Difícil escolher imagens. Esta ilustraria o que disse:
http://www.pedrocabritareis.com/workprogress_07img.html.
Trata tu dos aspectos técnico-blóguicos ou chama o Zé Manel.
É o 2º "porque": "por que raio", acho eu. Olha, tou baralhado...
Done.
Thanx.
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