STREET ART, GRAFFITI & ETC (VI)
(todas as fotos deste post: Berlim, Alemanha, 1994)
Confesso que nunca tinha ouvido falar na "teoria da janela quebrada" dos sociólogos de Palo Alto, na Califórnia. Mas, segundo William Bratton, ex-comandante da polícia de Nova Iorque — que, de acordo com o "Expresso" da semana passada, "aplicou na cidade a política de Tolerância Zero lançada pelo 'mayor' republicano Rudolph Giulianni" e que, nas palavras do "Público" (aqui podem rir-se), "quase eliminou a prostituição e o tráfico de droga" — numa conferência na Escola Superior de Polícia de Lisboa, ela assenta na ideia segundo a qual "ao deixar uma janela partida num prédio ou num carro abandonado, isso será apenas o início da degradação posterior desse local". Daí decorre necessariamente a muito perspicaz atitude de "dar tanta importância às pequenas infracções como aos grandes crimes", de não contemporizar com "mendigos agressivos, bêbedos, passadores de droga e prostitutas de rua" e (leiam e acreditem, ele disse-o mesmo) "uma das primeiras prioridades das polícias, o combate aos graffiti".
Porquê? Não chegam lá sózinhos? Então eu reproduzo as palavras do sábio: "Se os jovens não aprendem a respeitar a propriedade alheia, vão respeitá-la mais tarde? Não. Hoje fazem um graffiti, amanhã apetece-lhes e roubam um carro". Para esse efeito foi, pois, criada uma brigada especial (supõe-se que constituida por grafologistas) com o objectivo de "identificar as assinaturas dos desenhos, estabelecendo nexos de causalidade entre os autores e as obras" sendo os graffiteiros detidos "sem que haja a necessidade legal de os apanhar em flagrante delito".
William Bratton não tem dúvidas ("Encaramos o graffiti como outro crime qualquer"), dá conselhos à polícia portuguesa ("Isto já se transformou numa subcultura resistente. O que é preciso é dar sinal de que não se vai tolerá-los. E tratar quem os faz como um simples criminoso") e não hesita em brindar-nos com as suas originalíssimas opiniões sobre arte mural: "O graffiti é apenas mais uma forma de vandalismo urbano de alguém que não quer dizer mais nada a não ser 'Eu estive aqui'. É egoista, não é artístico. Os vossos graffiti de hoje também não se comparam com as inscrições políticas do pós-1974".
Longe de mim a pretensão de discutir estética com a bófia. Em particular com um representante da espécie que, surpreendentemente, parece preferir o realismo-socialista dos murais do PREC às inscrições da cultura hip-hop e foi buscar, sabe-se lá onde, a tese de que a "verdadeira arte" nunca será uma manifestação egoísta. Mas já me parece que devíamos ficar um bocadinho inquietos com as potenciais extensões da "teoria da janela quebrada": ou não será que dela se poderá naturalmente inferir que quem se esquece sistematicamente de tapar a pasta de dentes, mais dia menos dia, está a pôr bombas no Pentágono? E que, portanto, é uma indiscutível questão de segurança nacional a vigilância apertada de todas as actividades domésticas privadas? Não, não se trata de ficção científica "à la Big Brother" mas de algo inteiramente possível num país onde, em certos estados, a homosexualidade, mesmo praticada entre "consenting adults" na privacidade da própria casa, pode ser considerada crime.
Contudo, já que é de arte mural urbana que se trata, talvez fosse também de ilustrar os nossos agentes da ordem sedentos de cultura e de conhecimentos com mais umas conferências e colóquiozinhos sobre Keith Haring ou Basquiat (erudita literatura de apoio não falta), dar-lhes a escutar alguma da música que constitui a complementar banda sonora dos grafitti (ambos, de facto, manifestações de uma "subcultura resistente" que não lhes ficaria mal compreender e apreciar) e explicar-lhes a enorme sorte que tiveram o Miguel Ângelo da Capela Sistina, os autores dos horrivelmente "obscenos" frescos de Pompeia, os "vulgares criminosos" da obra colectiva que foi o muro de Berlim ou os outros, nossos antepassados de Foz Côa, por o tal de Bratton não andar lá por perto. Pela parte que me toca, podem contar já com a cedência da minha preciosa e numerosa colecção de fotografias de graffiti tiradas um pouco por toda a parte. Nomeadamente, naqueles sítios civilizados onde alguns poderes públicos e privados os estimulam e encorajam. (2000)
11 comments:
Prohibendi, expurgandi et abolendi.
Obrigados! muito obrigados. Não há, em arte, maior honra, pois nós sabemos que "a censura revela-se um exercício constante de toda a prática de poder e de toda a ordem institucional, contribuindo para desenhar «em negativo» os contornos da identidade cultural duma época", CATUCCI, logo "a rejeição torna-se no momento objectivo da própria arte", ADORNO. A bófia está, portanto, a escrever, hoje, os manuais de história da arte, de amanhã. Acautelem-se mazé os artistas "permitidos", que os manuais sofrem sempre de falta de espaço e daqui a, digamos, trezentos anos, terá que se resumir "Início do século XXI" a muito poucas páginas.
Este texto é magnífico!
Deve haver coincidências. Venho exactamente de ler isto.
"Deve haver coincidências. Venho exactamente de ler isto"
Um tag não é o mesmo que um graffito. E, ainda que algo pudesse ser dito em defesa dos tags - chega-te aí Gorgulho que o dirás muito melhor do que eu -, a tendência para confundir uns e outros distorce sempre a discussão.
Perfeitamente, perfeitamente. Conheço (não aprofundadamente) a diferença e não era minha intenção distorcer a discussão, era uma achega ao tópico arte urbana. E se algo pode ser dito em defesa dos tags, força. Eu gosto muito de grafitti (de alguns, bem entendido) e não costumo gostar de tags. Mas estou disposta a aprender.
O Gorgulho é que já tarda...
Querias era que eu publicasse aqui a minha célebre (entre mim e o meu gato) tese “Quarenta mil anos de tags”, que discorre sobre as tags de gente tão pouco ilustrada (lá está, o bófia bem disse) que nem sabia escrever e cedia à irreprimível tendência criminosa “de alguém que não quer dizer mais nada a não ser 'Eu estive aqui’” expalmando a mão sobre a parede e cuspindo tinta à volta. Felizmente, o aquecimento global de há 12.000 anos libertou-nos de tal praga. Desgraçadamente, até os criminosos acabam por aprender a escrever e, passados uns milénios, lá os temos de volta no Egipto praticando não só o nefando crime do tag mas essoutro também praticado por essa subcultura milenarmente resistente que consiste na “boca”, escrevendo em locais recônditos dos belos templos, que por mero acaso eles próprios construiam, aquilo que quem os mandava construir preferiria que não soubéssemos. Ele há ilhas no meio do Nilo plenas de interesse para qualquer criminólogo, pois as rochas en vez de estarem como deviam: limpinhas para turista ver, estão cobertas de tags e bocas, algumas muito indelicadas para as autoridades. Mas tags, tags, stricto sensu, não há como as desses arruaceiros (ainda por cima maçons) que construiram as catedrais medievais. Ele quase não há pedra da casa de deus que não esteja conspurcada pela tag de quem a cinzelou. Ora, que outro sentido haverá nisso senão dizer 'Eu estive aqui’. Porque, lá no fundo, todos queremos estar entre aqueles que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando” e como nem todos somos tão afortunados que possâmos discursar perante a Escola Superior de Polícia de Lisboa, ou ter blogs, aos outros só restam mesmo as paredes.
"espalmando", porra.
Voilá!
... e ainda me recordo de uma cena qualquer a propósito do tag como reanimação da arte da caligrafia...
Pois, um tag e um grafiti não são o mesmo. Mesmo assim, para eu gostar de um grafiti é preciso que tenha arte envolvida. Arte, arte. Mas um grafiti tem uma componente de revolta envolvida, e isso agrada-me. A tag é detestável. Prefiro mosquitos. Sim, pá, tá bem, eu sei, e não sei quê...
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