O AMIGO DO GIRA-DISCOS
Depois de Amália, José Afonso. Como que num exercício de realinhamento e purificação de referências, Cristina Branco, com Abril, conclui a sua imersão nos dois clássicos maiores da música popular portuguesa do século passado e, encerrado esse processo, prepara-se para reorientar o seu “pseudo-fado” (palavras suas) segundo as coordenadas – de espaço e, principalmente, tempo – , que lhe serão oferecidas por uma ilustríssima selecção de cantautores, músicos e poetas da lingua portuguesa.
Quando te surgiu a ideia de reinterpretar o reportório do José Afonso?
Desde o meu primeiro album que eu gravo José Afonso. Mas, desde há muitos anos, que eu pensava em fazer um disco só com reportório dele. Só que, à medida que fui fundeando raízes no meu fado – ou no meu pseudo-fado…–, a coisa foi-se tornando um bocadinho distante. No entanto, quando surgiu o convite do Jorge Salavisa para fazer aqueles concertos no S. Luis, pensei que era a oportunidade de ouro para, finalmente, pegar no Zeca.
Mas o convite incluía, especificamente, o reportório do Zeca?
O convite era-me dirigido mas. como se tratava, ao mesmo tempo, da celebração dos vinte anos da morte do Zeca, propus que se centrasse sobre as canções dele. Mas confesso que, nessa altura, nunca pensei que fosse integralmente José Afonso. Quando olhei para o reportório que seleccionei, assustei-me! Havia ali coisas que eu não sabia se iria ser capaz de cantar… a “Carta a Miguel Djéjé“, por exemplo, eu queria muito cantá-la mas não estava bem a ver como iria agarrá-la, não tinha nada a ver com o meu género de cantora. Entretanto, peguei nos vinte temas que achava mais adequados, desconstruímo-los e conseguimos montar um espectáculo com dezasseis temas. Quando chegámos ao quinto ou sexto concerto, chamei os franceses “donos” do meu reportório e perguntei-lhes se achavam muito descabido fazer um projecto dedicado a este autor, com este fundamento e tendo ele esta importância. Toda a gente gostou e, a partir daí, foi só abrir terreno e tempo para nós gravarmos.
O susto de que falavas não terá sido tanto por o reportório ser menos simples do que aparenta mas, especialmente, porque, tendo já sido ele abordado de tantos ângulos diferentes, a questão era como inventar outro novo?
Não há intenção de abrir nenhum ângulo novo. Muito pelo contrário. É apenas pegar no Zeca da forma mais simples e relembrá-lo. Nós todos (não fui só eu que tive este sentimento) não tivemos qualquer intenção de recriar ou inventar qualquer coisa de novo à volta do reportório do Zeca mas sim recordar o significado que ele teve na nossa geração e na minha própria interpretação e de cada um dos músicos, como nós juntámos os nossos universos e o interpretamos. Se alguma recriação aconteceu é porque cada um daqueles músicos é muito grande sobre a sua própria música. Eu sou, no fundo, o fio condutor, quem está mais próximo da interpretação do Zeca.
No percurso do teu, como lhe chamas, “pseudo-fado”, houve algum momento onde ele seguiu numa ou noutra direcção por influência da música do Zeca Afonso?
Sim, tens razão, houve. Ele influencia constantemente aquilo que eu faço. Essencialmente, pela simplicidade. E ele ensina a cantar. Definitivamente. Até naquela tentativa de enraízamento na música portuguesa que acho que é notória nos meus discos. Parece-me até que, curiosamente, estão cada vez mais próximos de uma música mais tradicional. Eu quando digo que o Zeca é "o amigo do gira-discos” é verdade porque, sempre foi, para mim, uma constante, está no meu ouvido, trauteio-o o tempo todo.
Este é um episódio lateral na tua carreira ou faz continuidade com o que ficou para trás e com o que virá a seguir?
Para mim, faz todo o sentido. Embora, pelo facto de não ter guitarra portuguesa nem aquela sonoridade característica de todos os álbuns anteriores, talvez esteja um bocadinho à margem. Depois, do Ulisses, houve um interregno: divorciei-me e, no fundo, este é o meu tempo de luto. Fiz uma homenagem à Amália também porque senti necessidade de perceber mais sobre o fado, há um certo bric-a-brac nesta história de ser fadista e de cantar o fado.
Já que referiste a tua separação do Custódio Castelo, posso perguntar-te se a mudança do trabalho com um guitarrista como ele para outro(s) necessariamente diferente(s), foi um processo complicado?
Ao nível da sonoridade, estranhei imenso. Ainda hoje me faz confusão porque estava muito habituada àquele som, muito diferente do habitual em guitarra portuguesa que é bastante mais estridente. Quando surgiu um novo guitarrista, era inevitável que eu estranhasse. Não foi fácil, não posso dizer que as coisas continuaram normalmente porque, a esse nível, não é verdade. O meu respeito pelos outros senhores mas o som do Custódio era muito especial. No plano da composição e da direcção musical não senti isso, muito pelo contrário, até porque sinto que o Ricardo Dias tem uma visão da música muito mais próxima da minha.
Já tens uma ideia de qual será a etapa seguinte?
Já está em pré-produção, a gente não pode parar! Só sairá em 2009 e são doze poemas e doze compositors, todos portugueses. A intenção – e alguns deles já estão a trabalhar – é que sejam os cantautores a compor: o Jorge Palma, o Vitorino, o Janita (que fez apenas música para um poema fantástico da Hélia Correia), o Sérgio Godinho, o Fausto (ainda terei de falar com ele, se calhar, estou a antecipar demais algumas coisas…), Pedro Abrunhosa, e depois, tenho dois poemas do Júlio Pomar que gostava que fossem musicados pelo António Vitorino de Almeida, a letra para um tango do Vasco Graça Moura, dois poemas do Manuel Alegre escritos propositadamente para este disco e ainda deverão surgir outros nomes como o João Paulo Esteves da Silva, o Ricardo Dias e a Amélia Muge. O tema central será o tempo – o álbum chamar-se-à Cronos –, no seu sentido mais lato. Eu parto sempre do título dos álbuns para a concepção, o único onde isso não aconteceu foi, justamente, neste sobre o José Afonso.
CLÁSSICOS: CAPÍTULO II
Cristina Branco - Abril
Devíamos-lhe já a reinterpretação definitiva de uma parte significativa do reportório de Amália (CD/DVD Live, 2006). Coisa que não é necessário ser demasiado perspicaz para se entender que não é exactamente proeza ao alcance de qualquer um(a). Capítulo seguinte e nova prova de obstáculos: o cancioneiro de José Afonso, no vigésimo aniversário da sua morte, após múltiplas e diversificadas abordagens que, sucessivamente, ensaiaram rememorações e reavaliações. Como refazer esse caminho sem repetir nem os originais nem os passos de outros? Cristina Branco garante que “não houve intenção de abrir nenhum ângulo novo” e que se tratou apenas de “pegar no Zeca da forma mais simples e relembrá-lo”. O propósito terá sido esse mas – ajoelhemos mais uma vez perante ela – o que Abril (na sequência dos concertos do S. Luís) nos oferece é, certamente, não o oposto, mas a mais fresca e vibrante releitura contemporânea de dezasseis temas de Afonso.
Como? Exactamente da forma que ela o descreve: tirando o máximo partido da versatilidade idiomática dos músicos que a acompanham (Ricardo Dias, teclados, Bernardo Moreira, contrabaixo, Alexandre Frazão, bateria, Mário Delgado, guitarras, João Moreira, trompete) e que, não distorcendo nem desfigurando a identidade profunda das canções, as tomam como eixo de recriação num terreno próximo da liberdade do jazz (“Ronda das Mafarricas” é o exemplo mais gloriosamente extremo de transfiguração) mas sem nunca se deixar prender também por qualquer imperativo de “tradução”. O resto fica entregue à magnífica transparência e agilidade da voz de Cristina que dança com as melodias e as palavras de Zeca por entre sombras e abstracções sonoras. (2007)
02 December 2007
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5 comments:
Nunca tinha visto essa foto do ganchinho...
Medo... muito medo... Pedro Abrunhosa?
Não sabia do divórcio. Estará ela disponível para amar?
"Nunca tinha visto essa foto do ganchinho..."
Nem eu. Descobri-a e - como estava um bocado "turva" mas queria mesmo utilizá-la - paintshopei-a discretamente.
"Medo... muito medo... Pedro Abrunhosa?"
Há que ter fé...
"Estará ela disponível para amar?"
Não está prevista a inauguração da secção-Caras do Provas de Contacto.
Não vejo como possa alimentar a fé na questão Pedro Abrunhosa.
Em relação à secção Caras era uma pequena divagação. Mas será que estará mesmo? Opssss
é impressão minha ou noutro dia e noutra hora poderiamos estar a falar de outro/a fadista qualquer?
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