11 October 2007

PRATOS LIMPOS?



Ficará, agora, definitivamente esclarecida a famigerada polémica que, há dois anos, Caetano Veloso desencadeou ao referir-se à colonização portuguesa do Brasil? De passagem por Portugal, para mais uma série de concertos, esforçámo-nos ambos que estivemos na origem dela por — numa conversa que viajou entre as suas difíceis relações com os media, o último álbum Noites do Norte e uma certa "vontade de ser americano" — deixar tudo em pratos limpos. Será desta?

Quando saiu o seu último álbum, Noites do Norte, o Caetano concedeu uma única entrevista que colocou na sua página da Internet onde falava acerca da forma, na sua opinião, apressada e leviana como os media tratam os objectos e produções artísticas. Essa sua opinião mantem-se, evoluiu, piorou?
Evoluiu mas, basicamente, mantem-se. É um problema, essencialmente, do jornalismo e da indústria cultural. Foi como um processo em que um juiz afirma "este comentário não deve ser levado em conta". Mas o comentário já foi feito e fica na cabeça dos jurados... (risos) Todos os jornalistas reclamaram mas isso ficou na cabeça deles.

Aqui em Portugal, o disco saiu exactamente na semana anterior ao Natal. O que fez com que, quem pretendesse escrever e dar notícia dele a propósito das proverbiais prendas, tivesse de não seguir o seu conselho e escutá-lo apressadamente. Eu fiz questão de lhe dar algumas semanas de audição e, deliberadamente (escrevi mesmo sobre isso), atrasar a recensão dele em atenção às suas observações...
Isso é muito bom. Aí já valeu a pena. Eu nunca entrei numa redacção de jornal. Fiz crítica de cinema quando era novo mas não ia à redacção. Uma coisa é anúncio, outra é notícia, outra ainda é apreciação crítica. O facto de se ter estabelecido o hábito de confundir as três é empobrecedor. Os jornais devem dar a liberdade aos críticos para escreverem na medida em que se sintam preparados para o fazer. Ver o filme ou ouvir o disco as vezes que necessite, sentir a presença do disco no mundo. Os editores deveriam não só aceitar como encorajar isso. As gravadoras, se quiserem colocar publicidade, que comprem uma página. E um jornal, se acha que a saída de um disco de Michael Jackson é notícia, deve fazê-lo como notícia independentemente da crítica. Agora, achar-se que, pelo facto de o ter mencionado ou de outro jornal o ter feito antes, o assunto morreu, isso transforma os jornais numa coisa muito mais comercial do que a música comercial que os críticos criticam. Isso foi o que eu quis dizer naquela altura.

Mas sabe bem que a pressão da actualidade existe mesmo e não é possível dilatar essa margem de manobra até se chegar a uma opinião absolutamente sólida e fundamentada...
Mas acha que precisa de uma margem de manobra tão grande assim? Pode-se escrever uma crítica interessante sublinhando mesmo quão provisória é uma primeira apreciação quando achar que for preciso. O que não é bom é misturar anúncio, crítica e notícia numa coisa só.



Continuando a falar das relações entre músicos e jornais, da última vez que conversámos em Londres, mesmo no final da entrevista, o Caetano lançou-se numa enfática elaboração acerca da colonização portuguesa do Brasil que suscitou uma enorme polémica que, penso, nunca chegou a ser verdadeiramente esclarecida.Ficou um certo equívoco, um certo azedume, como se "a pátria" se tivesse sentido ofendida...
Lembro-me muito bem. Você não mudou uma palavra do que eu disse nem eu nunca o afirmei. Li vários artigos na imprensa portuguesa e respondi até pessoalmente, por carta, a um de que gostei muito, do Miguel Sousa Tavares. A minha resposta à sua pergunta continha uma certa agressividade porque você mencionou a minha aparição na revista "Caras" que, no Brasil, foi um assunto que me perseguiu sem tréguas e me parecia uma manifestação desse elitismo pequeno e redutor. E, a isso, reagi e reagirei sempre violentamente. Você não representava nem partilhava dessas posições mas pareceu-me um sintoma de que aquilo tinha atravessado o Atlântico. Repetiria exactamente aquilo que disse, com as mesmas palavras, sem mudar uma vírgula. Mas acho que o seu jornal deu um destaque exagerado às minhas declarações que causou um certo mal-estar entre amigos meus portugueses. No entanto, aquela comparação entre a colonização portuguesa do Brasil e a colonização inglesa na América do Norte é um lugar comum: enquanto os puritanos ingleses foram para a América com as suas famílias para criar uma nova sociedade melhor e os EUA nasceram desse sonho, os portugueses no Brasil (assim como os espanhóis no resto da América) tiveram, primeiro, uma desatenção muito grande e, depois, um programa meramente extractivista. Não há muita discussão quanto a isso. Mas o que mais interessava ali (e você também transcreveu isso) é que, no fim, eu dizia que, como resultado de uma história tão original, nós temos um tesouro incomparável nas mãos e que era nosso dever agir à altura dele. Esse aspecto altamente construtivo do projecto luso-brasileiro ficou enterrado diante do sensacionalismo da minha aparente agressão a Portugal.

Aliás, essas suas preocupações continuam muito presentes em Noites do Norte com o tema da escravatura e, logo, da colonização que o atravessa...
É uma linha de força predominante. Mas não tinha planeado fazê-lo assim. Tinha pensado fazer um disco de experimentação de sons, de percussão e voz, sem ter sequer canções. Contudo, o livro do Joaquim Nabuco caiu-me nas mãos e deparei-me com aquele trecho que abre o disco e pensei logo em inclui-lo. Depois compus o "13 de Maio" e, a seguir, quis gravar o "Zumbi" porque o movimento negro no Brasil disputa a importância histórica do Zumbi sobre a princesa Isabel. O Zumbi dos Palmares foi um escravo negro fugido que criou um "quilombo", uma comunidade independente que durou muitos anos, no nordeste do Brasil, no século XVIII. O movimento negro reivindica como sua grande data a da morte do Zumbi e não a da abolição da escravatura onde se louva a princesa Isabel, filha de D. Pedro II que assinou a abolição, a "lei áurea". Quis pegar os dois lados da história para mostrar que estou atento à discussão mas tinha muito interesse em revalorizar a figura da princesa Isabel, o acto da abolição e a forma como a família imperial se posicionou na História, influenciado pelo Joaquim Nabuco. Sempre gostei dos festejos de 13 de Maio em Santo Amaro onde, desde 1889, os pretos comemoram.



Gostava que me explicasse o sentido de "Rock'n'Raul" em cujo texto afirma: "Quando eu passei por aqui, a minha luta foi exibir uma vontade feia da puta de ser americano (e hoje olha os mano), de ficar só no Arkansas, esbórnia na Califórnia, dias ruins em New Orleans, o grande mago em Chicago" etc... Deve ler-se em primeiro grau ou é completamente irónico do princípio ao fim?
É triplamente irónico. É uma homenagem ao Raul Seixas nos termos dele, numa linguagem de rock'n'roll, com uma letra que não é muito explicativa mas mais feita de explosões verbais. O Raul era da minha idade, também da Bahia e foi, desde a infância, um apaixonado pelo rock'n'roll. Não é o meu caso. Eu vim a gostar de rock'n'roll no meio/fim dos anos 60. Ele adorava a mitologia e o imaginário americanos. Nós adoptámos isso no tropicalismo como uma coisa interessante. Mas, aí, já era uma volta, não era um contacto de primeiro grau, era uma digestão, havia já ali algo de irónico. Essa frase "hoje olha os mano", no Brasil toda a gente sabe que me estou a referir ao pessoal do rap, pessoal de periferia, de favela, que é muito radical política e até racialmente, também por grande influência dos americanos. Todos têm nomes como MV Bill, Ice não sei quê... E são muito bons. Há um grupo de S.Paulo genial, os Racionais MCs. Depois, o próprio Raul ironizava com o seu americanismo, disse mesmo à Rita Lee "Eu sou americano, só nasci no país errado". A "vontade de ser americano" não é vista como uma coisa negativa mas, ao mesmo tempo, carrega uma certa ingenuidade que eu, que sou de outra formação, não tive.

Pegando nessa "vontade de ser americano", como é que o Caetano que escreveu "Manhatã" viu os atentados recentes a Nova Iorque?
Sofri muito e ainda estou a sofrer. Estive em Nova Iorque até ao dia 10 de Setembro. Cheguei na madrugada desse dia a Los Angeles, ia cantar no Grémio no dia 11. Cheguei a ensaiar na noite de 10, dormi e acordei a 11, vi essas notícias na televisão. Primeiro, senti uma dor profunda pela brutalidade do acontecimento, depois porque era Nova Iorque, uma cidade que eu adoro. Senti a envergadura do acontecimento, vi que isso significa uma guinada na história actual, na vida do mundo. A única coisa que fiz foi passar a cantar "Manhatã" neste espectáculo de que, originalmente, não fazia parte. Mas, ao cantá-la, o meu sentimento e o de quem ouve, nunca mais serão iguais. (2002)

1 comment:

Anonymous said...

é pá vai ver este blog
www.heteronimus.blogspot.com
é muita fixe!