17 September 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XIII)



"Os 'raindogs' são um fenómeno que se encontra muito na baixa de Manhattan. Depois de uma tempestade, os cães ficam apanhados. A água apaga-lhes o rasto e eles não conseguem voltar para casa. Missão impossível. É por isso que, por volta das quatro da manhã, se dá com todos aqueles cães perdidos com o ar de quem quer dizer: 'O senhor desculpe, mas não se importava de me ajudar?...'

(...)

"Fui ao médico da garganta e ele disse-me 'Você não pode continuar a cantar assim, ainda acaba como o Frank Sinatra'. E eu respondi-lhe 'Como o Frank Sinatra? Quer dizer, rico e poderoso?!...'

(...)

"Às vezes, as canções caem-nos no quintal como se fossem meteoritos. Podem ter um efeito enorme sobre nós. Dizem-me que algumas já salvaram vidas. São, por isso, pequenos paramédicos. Mas algumas também se transformam em assassinas. Outras, esborracham-se no para-brisas. E outras nunca mais nos desamparam a loja. Batemos-lhes mas não há meio de se irem embora. Outras, pelo contrário, não descansam enquanto não dão à sola e nunca mais escrevem. São umas filhas da mãe ingratas.

(...)



"Costumava construir skates de contraplacado e ia a um rinque de patinagem chamado Skate Ranch só para comprar as rodas. Patinávamos por uma colina da Robert Avenue abaixo que tinha uma curva enorme onde se ganhava imensa velocidade. Era mesmo à porta do nosso vizinho, o senhor Stitcha. Ele morava no ponto melhor da curva, o sítio onde ela culminava numa belíssima elevação do asfalto mesmo junto à porta dele. O senhor Stitcha bebia demais, coisa que toda a vizinhança sabia. Usava óculos com lentes muito grossas, tinha uma cara vermelhusca e uma t-shirt cheia de nódoas de vinho tinto. Mais ou menos como eu sou agora... Seja como for, só naquele sítio conseguíamos atingir tamanha velocidade e emoção o que transformou o portão dele num festival para todos os patinadores da zona. Durante o Halloween, ele teve um ataque de coração e morreu à porta de casa. Disseram-nos que tinha morrido por nossa causa e que cada um de nós era um pouco culpado. Crescemos com a memória de sermos todos cúmplices de um crime. Era uma coisa um bocado shakespeareana, tínhamos todos a mão no punhal. Tenho vivido mortificado com isto mas quero dizer, aqui e agora, que eu não matei o senhor Stitcha. Precisei de muita terapia e de muito álcool para chegar a ser capaz de dizer isto. Que o senhor Stitcha descanse em paz.

(...)

"As pessoas pensam que será tudo muito simples depois de morrermos mas a mim parece-me que vai ser um pesadelo organizativo. Todos aqueles espíritos por ali... 'Desculpe, qual é o seu número?' Vai ser um inferno. E para encontrarmos alguém depois de termos morrido não vai ser nada fácil, como é que vamos conseguir identificar os nossos entes queridos que se transformaram todos em luzinhas a piscar?..."

1992

(2007)

2 comments:

Anonymous said...

And you won't believe what Mr. Sticha saw
There's poison underneath the sink of course

Anonymous said...

Talvez "rainmen". Perdidos sobre chuvas de músicas e palavras. Alguém nos mostraria o caminho de casa?