18 July 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (V)



"O meu pai tocava um bocadinho de guitarra e havia um tio que tocava orgão na igreja. Pensavam substituí-lo porque todos os domingos ele tocava pior que no domingo anterior. Chegou ao ponto em que 'Onward Christian Soldiers' se parecia cada vez mais com 'A Sagração da Primavera' do Stravinsky e, por fim, tiveram de o despedir. Demoliram a igreja e ele levou o orgão e instalou-o na casa dele. Os tubos chegavam ao tecto. Era também botânico e vivia no meio de um laranjal por onde passava um comboio. Costumávamos visitá-lo naquela idade em que eu ainda era muito pequeno e impressionável. Deixavam-me tocar num piano que, entre outras coisas, tinha estado à chuva. Várias teclas brancas estavam encravadas, por isso aprendi a tocar nas pretas.

(...)

"Toquei cornetim na escola. Quando, pela manhã, içavam a bandeira e, à tarde, quando a desciam. Ainda me lembro do cheiro do estojo do cornetim: a ovos podres e camisas sujas.

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"A infância é muito importante para mim quando escrevo. As coisas que nessa altura aconteceram, o modo como as vimos e, mais tarde, as recordamos. 'Kentucky Avenue' pode ter saído um bocado melodramática mas, quando tinha dez anos, Kipper, o meu melhor amigo, tinha poliomielite, andava numa cadeira de rodas e costumávamos fazer corridas para a paragem do autocarro.

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"Não faço ideia como começou o boato acerca da minha reputação de bêbedo. Mas, já se sabe, os jornais exageram tudo. Tomamos um cálice de sherry antes de nos deitarmos, lemos um bocadinho de Balzac, vamos para a cama às oito e meia e, quando damos por isso, estão a contar histórias acerca de nós com uma garrafa de Cutty Sark, numa pensão manhosa, a ver revistas porcas.

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"Entrevistas para os jornais? Custa-me muito dizê-lo mas, dois dias depois de terem sido impressas, estão a forrar os caixotes do lixo. Ninguém as encerra num cofre, comprometendo-nos para toda a eternidade com as nossas palavras.

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"Quando ando na estrada, acordo, pela manhã, como milhões de outros americanos, e vou para o aeroporto. Quando chego a uma nova cidade, vou até à Câmara de Comércio e falo com quem manda ali. Mas, a maioria das vezes, nem sabemos onde estamos. Pode-se muito bem subir para o palco e dizer 'Estou muito feliz por estar aqui em St Louis' e ser Denver ou Seattle. Já aconteceu.

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"Quando estou a gravar, há certas coisas que tenho de fazer. Molho o cabelo, visto o casaco do avesso e desaperto o botão do colarinho. Atiro uma pedra pela janela, arranco a cabeça a uma boneca, bebo uma garrafa de scotch e aí vou eu. Para algumas pessoas, assistir a um processo destes, pode ser bastante embaraçoso. Por isso, tenho de trabalhar com gente de confiança que não se vire contra mim.

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"Pessimista, eu? Não, fui educado como metodista. Mas isso também há-de mudar.

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"Keith Richards e eu somos da mesma família. Não fazia ideia. Encontrámo-nos numa loja de lingerie, estávamos a comprar soutiens para as nossas mulheres. Tinham uma salinha ao fundo onde se podia beber qualquer coisa, dois copos de cada vez. Ele andava a pedir-me dinheiro emprestado há tanto tempo que tive de pôr um ponto final naquilo. É um cavalheiro. Chegou ao estúdio, tirou o chapéu e meia dúzia de pássaros voou para fora dele.

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"Quanto a mim, um piano não é senão lenha para a fogueira. Lentamente, fui-o descascando, tábua a tábua, até não restar senão metal, cordas e marfim.

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"O Kansas é um bom lugar para sonhar. Acordamos de manhã, olhamos através da janela e não vemos nada, temos de imaginar tudo. Era capaz de viver lá muito bem com um portão, um cão feroz e uma caçadeira. Livrasses-te de atirar a bola de baseball para o meu quintal... nunca mais a vias!

1985

(2007)

4 comments:

Anonymous said...

«Lentamente, fui-o descascando, tábua a tábua, até não restar senão metal, cordas e marfim.» O que descreve bem o processo de composição das músicas dele...(se é que não estou a dizer uma bacorada).

Anonymous said...

No sentido de eliminar o supérfluo...para atingir o nervo da coisa...(mas isto já são teorias)

João Lisboa said...

"O que descreve bem o processo de composição das músicas dele...(se é que não estou a dizer uma bacorada)"

Não é bacorada nenhuma.

Ana Cristina Leonardo said...

João, é impressão minha ou isto vai em escala ascendente?