09 July 2007

ENTREGAR AS PALAVRAS



Na Sala Pequena do Concertgebow de Amsterdão, o público que a esgotava rendeu-se por inteiro à voz e aos fados de Camané. Em digressão de nove datas pela Holanda e pela Bélgica, optando por uma apresentação sem qualquer amplificação sonora, Camané — a segunda voz do fado, depois de Amália, a pisar o palco do Concertgebow — demonstrou exemplarmente como a arte da canção popular de Lisboa se faz da entrega total ao sentido das palavras e à emoção das melodias e vive mais de uma certa austeridade e intensidade interpretativas do que de quaisquer exercícios de virtuosismo vocal. Com um novo álbum — Esta Coisa Da Alma — a ser publicado simultaneamente em Portugal e nesses dois países onde existe já um público fiel e regular para a nova geração de fadistas portugueses, depois do concerto, Camané explicou a sua visão da tradição fadista e como transportá-la para fora de fronteiras.

Enquanto te ouvia cantar no Concertgebow, estava a sentir-me estranhamente privilegiado por, ao contrário da maioria do público holandês que te escutava, eu poder compreender perfeitamente o significado de todas as palavras que tu cantavas. Sendo essas palavras tão importantes nos teus fados como ultrapassas essa limitação quando cantas fora de Portugal?
Só tenho uma resposta para isso: procurando fazer passar o prazer e a emoção que sinto em cantá-las. São talvez esse prazer e essa paixão que passam para as pessoas. Há tempos fui a um espectáculo do Joan Manoel Serrat em Madrid. Não o conhecia de todo, foi uma descoberta para mim. No final, o manager dele convidou-me para ir ter com ele aos bastidores mas não consegui lá ir, não sabia o que havia de lhe dizer. No dia seguinte, comprei logo quatro discos dele e, depois, nos meus anos, um amigo ofereceu-me ainda outros. Como ele canta em catalão, também não percebia muito do que ele dizia. Mas o importante é quando a música consegue, de facto, ultrapassar essas fronteiras.

Em especial no "Se Ao Menos Houvesse Um Dia", quando, no final, cantas "deste fado onde me deito, subia até ao teu peito nas veias de uma guitarra", não pude deixar de pensar no que os holandeses estavam a perder...
Essa é uma letra do João Monge. Quando comecei a pensar neste disco, achei que a forma como ele escreve se poderia adaptar muito bem à linguagem dos fados tradicionais. Passei-lhe uma grande quantidade de discos de fados antigos e ele escreveu-me várias letras nomeadamente essa para o "fado três bairros". Essa foi uma das que me saiu logo à primeira.



Esta Coisa Da Alma, à excepção de uma ou duas fugas à regra (como o "À Janela" da Amélia Muge ou o "Claridade" do José Mário Branco), parece-me o teu disco mais "limpo", mais clássico, que parece procurar captar o espírito essencial do fado...
Foi exactamente essa a intenção. O "fado menor", por exemplo, não tem propriamente música. Existe uma base harmónica mas quem canta é quem cria a música, pode-se estilar de várias maneiras. É evidente que é preciso estar muito à vontade dentro do espírito do fado para isso poder acontecer. O mais importante não é mostrar a voz mas entregar aquelas palavras. As coisas quase ficaram feitas no início das próprias letras, não sairam forçadas. As respostas da guitarra ao canto também enriquecem tudo com outros sentidos e um outro peso que devem muito à importância que o José Mário Branco tem tido na forma como eu encaro o fado. No "Claridade" (que é dele e da Manuela de Freitas), houve coisas que foram modificadas na altura em que eu estava a cantar porque a forma como eu interpretava o sentido das palavras pedia isso. Mas toda a vida o fado foi assim.

Ao terceiro álbum, sentes que já és capaz de ir mais longe de que na altura (quando tinhas vinte e cinco anos) em que gravaste o primeiro? Isto é, sentes que há fados que, para serem cantados, exigem mais maturidade do que outros?
Claro. Ainda hoje, quando oiço os discos do Alfredo Marceneiro, da Amália, do Carlos do Carmo ou do Carlos Ramos, aprendo imenso. Gostava de ser capaz de ter aquele desprendimento com que, por exemplo, o Marceneiro cantava o "Lembro-me De Ti" (que é uma história enorme) como se fosse uma coisa que já tivesse acontecido há 40 ou 50 anos e de que ele se ia recordando na altura.

Esta recente multiplicação de novos fadistas em que (entre outros) se incluem tu, a Cristina Branco e a Mafalda Arnauth e que, inclusivamente, começa a ser reconhecida fora de Portugal, na tua opinião, trará alguma inovação para o fado ou é apenas uma natural renovação de gerações?
A renovação natural de gerações implica, de alguma forma, uma renovação do próprio fado. Falar de "novo fado" é que já me faz uma certa confusão, para mim o fado é sempre novo. Haver pessoas novas a cantar significa inevitavelmente que as coisas se transformam. Possuirão uma forma de falar e de encarar a realidade diferentes e, por isso mesmo, não deixará de existir autenticidade. Mas é muito importante que um disco de fado possa ser imediatamente identificado como fado. Às vezes, pode ser só a forma de entoar do fadista. Mesmo quando canto coisas que não são exactamente fados (como o "À Janela", da Amélia Muge) ou quando utilizo o contrabaixo do Carlos Bica, o espírito do fado permanece lá. Até porque consegui uma grande credibilidade no meio do fado, os mais velhos acreditam que eu sou realmente fadista e o meu percurso autoriza-me isso.



Em última análise, se calhar, poderá não se saber definir muito bem o que é o fado mas sabe-se precisamente quem é fadista e não é. Por outras palavras, cantes o que cantares, não ficam dúvidas de que és fadista, possuis a atitude fadista, não é?
Não será bem, bem assim... Como disse há bocado, é preciso identificar claramente como fado um disco de fado. Já me aconteceu ouvir a Fafá de Belém a cantar fados e eu não identifico aquilo como fado. Porque ela não é fadista. Depois, um fadista também não se sente bem em determinados ambientes musicais embora possa e deva influenciar a atitude dos músicos com que trabalha. O fadista não "acompanha" apenas os músicos, partilha a música com eles e determina a forma como todos, em conjunto, vão actuar, tem de existir uma empatia muito grande. Como, por exemplo, aconteceu com o Carlos Bica que não é um músico de fado mas que se integrou perfeitamente na atmosfera desta música.

O modo fadista de cantar é para ti, então, o essencial?
O fado tem espaço para tudo, possui uma liberdade enorme sem que o sentido das palavras se perca. É essencial pensar no que se está a dizer, compreender o que se diz e senti-lo. As coisas saiem-me como se estivesse a falar mas, ao mesmo tempo, estou a cantar, a transformar o que digo numa canção. Às vezes, tenho consciência de que essa austeridade pode funcionar contra mim, muitas pessoas querem é circo. Mas o fado não pode ser uma exibição de virtuosismo vocal. Se me deres umas quadras do Fernando Pessoa, posso arranjar uma forma de as cantar logo a seguir. E, se as quiseres de outra maneira, vou buscar de outra maneira. A "Igreja de Santo Estevão", por exemplo, é o mesmo fado do "Povo Que Lavas No Rio". Mas, lá está, é diferente, é outra coisa.

Estás a explicar-me essas coisas a mim que sou português e, como tal, conheço naturalmente o que é o fado. Mas como é que, aqui na Holanda, onde, no mês de Fevereiro, o Concertgebow também tem programados os Madredeus na qualidade de representantes do "Portuguese fado", demonstras ao público que fado é aquilo que tu cantas e que os Madredeus são outra coisa?
O fado defende-se a si próprio. Em Portugal sabemos que o fado é outra coisa mas, cá fora, não é preciso andar a explicar o que é e não é fado. A autenticidade virá naturalmente ao de cima, o tempo tratará disso. O fado precisa de tempo para ser descoberto. (2000)

5 comments:

menina alice said...

Olha que bonito que o teu blog está hoje! :D

João Lisboa said...

Eu sabia que irias apreciar.

ND said...

Passei, tb eu, a sentir-me privilegiada, depois de ler... :)

Ana Cristina Leonardo said...

eu sei, eu sei, não é o fado: é o camané

menina alice said...

É o fado do Camané. :) (e as fotos foram muito bem escolhidinhas; o rapaz não esteve mal, não) :D