01 July 2007

ANTES DE TUDO, AS PALAVRAS

Só por causa de June Tabor, 2005 já seria um grande ano de música: uma caixa de quatro CD Always — repleta de inéditos e gravações de concertos (como ela própria reconhece, a presença sobre um palco acrescenta algo de indefinivelmente maior às canções que interpreta) e, agora, um novo álbum, At The Wood's Heart, onde, mais uma vez, a sua voz nos conduz através de uma daquelas miraculosas viagens em que o tempo literalmente pára, entre canções da época de Henrique VIII, tradicionais britânicos e peças mais ou menos recentes de Anna McGarrigle, Duke Ellington, Bill Caddick ou Gabriel Yacoub. E, na qual, todos os trajectos são determinados pelas palavras.

No "booklet" da sua caixa, Always, a certa altura, fala da obsessão de alguns jornalistas pelo suposto "tema" que, em cada álbum, articularia todas as canções e de como ficam desapontados quando lhes responde que não existe nenhum. Pergunto-lhe apenas, então, que processo de selecção utilizou para At The Wood's Heart?
Pois, mas a verdade é que neste álbum existe um tema!... (risos) São todas canções de amor de um ou outro género, o que é uma categoria muito ampla. Nos concertos, interpreto muitas vezes canções que reflectem sobre os diversos aspectos do que é e não é o amor, trate-se do desejo, da luxúria ou de quando tudo corre mal. A maioria das emoções humanas acaba sempre por passar por aí. Já interpretava ao vivo várias destas canções mas ainda não estava muito segura se as deveria transpor para um disco. Quando comecei a olhar com mais atenção para o que tinha na gaveta, apercebi-me que a maioria eram canções de amor — mesmo que, como acontece em "The Cloud Factory", se trate do amor de um filho pelo pai. A maioria não fala de amores muito felizes mas, no fundo, é como na vida acontece.

Que foi, afinal, quase sempre, o género de canções que preferiu...
Porque só se escreve uma canção de amor quando somos obrigados a pensar nisso. Quando tudo corre bem, a vida simplesmente continua. Pela experiência dos outros transmitida através de uma canção, damo-nos conta de que não estamos sós, que todos cometemos os mesmos erros e que, eventualmente, existirá uma luz, lá ao fundo. É exactamente disso que fala a primeira canção do álbum, "The Banks Of The Sweet Primroses", o que, de certo modo, pode contribuir para nos auxiliar a ultrapassar a dor.

Por outro lado, continua a combinar canções de autores contemporâneos, com outras retiradas da música tradicional ou mesmo de há três ou quatro séculos...
Para mim, não tem a menor importância de onde provém uma canção. Desde que seja uma boa canção, tenha um texto forte e me fale directamente, é-me completamente indiferente o facto de ser muito recente ou muito antiga. Se mexer com as minhas emoções, sei que vou ser capaz de a interpretar. Porque é isso que eu faço: sou uma intérprete que procura partilhar as sensações que uma canção me proporciona. Tenham as canções seiscentos anos ou apenas dois.

Já da primeira vez que conversámos há anos, me tinha dito que, antes de mais, lhe interessavam os textos das canções. O que a impedia de abordar aquelas que fossem escritas em idiomas que não domina. Continua a ser assim?
Para cantar com convicção, preciso de compreender o texto. É verdade que já cantei em yiddish, embora não fale yiddish, e também em alemão, apesar de o meu alemão ser virtualmente inexistente. E, claro que me sinto à vontade a cantar em francês, que é uma língua que domino.

A sua licenciatura em Oxford, em Línguas Modernas e Medievais, incidiu precisamente sobre o francês, não foi?
Sim, mas, essencialmente, francês Medieval e do Renascimento... nada depois de Voltaire!... (risos) Não me sentiria confortável a cantar em espanhol ou em português, iria ficar com a sensação de que não estaria à altura do texto. Uma ou outra canção em particular talvez pudesse apoderar-se da minha imaginação se eu sentisse que, em tradução, funcionava bem o que, na maioria dos casos, não acontece — é muito difícil encontrar uma tradução que, não sendo necessariamente literal, capte o espírito do texto original.

Quando estava a preparar esta entrevista, dei-me, subitamente, conta de algo em que nunca tinha reparado: tendo essa preferência tão acentuada por canções de "love gone wrong" e por textos fortes, curiosamente, nunca cantou nenhuma canção de Leonard Cohen...
As canções dele "não falam comigo". Admiro a qualidade da sua escrita mas não me emociona. Nunca me senti especialmente atraída por nenhuma. Consigo apreciá-las de um ponto de vista intelectual mas não mais do que isso. Acontece o mesmo, por exemplo, com a Joni Mitchell, embora já tenha cantado uma canção dela. Já percebi que gosta muito dele, desculpe-me... (risos)

A sua reacção a uma canção é sempre uma coisa "de pele" ou passa por alguma grelha mais reflectida, mais racional?
São as palavras, são sempre as palavras antes de tudo o mais. Se me apresentam uma canção, antes de escutar a melodia, vou querer ler a letra. Não é preciso que todas as palavras estejam exactamente no lugar certo mas tem de haver ali qualquer coisa que me atraia: um uso consistente da línguagem, uma boa narrativa, uma reacção emocional que me faça rir ou chorar, algo que me agarre a atenção. Só depois irei ouvir a música. É evidente que há canções que, num primeiro momento, não me impressionam muito mas, se me ficam na cabeça durante algum tempo, às vezes, acabo por conseguir vê-las numa outra perspectiva e descobrir o que, inicialmente, me tinha escapado. Escolher canções é um assunto tão subjectivo que é extraordinariamente difícil analisar exactamente por que motivo uma canção nos diz alguma coisa e outra não.

Poder-se-ia, então, dizer que, para si, em última análise, a canção é um sub-género da literatura?
Não podemos esquecer a interpretação, a "performance". O que já não é só uma questão de literatura, apenas uma reacção intelectual. A interpretação tem um fortíssimo conteúdo emocional explícito ou implícito, na relação com os outros músicos, com o público e, naturalmente, por força da tensão nervosa e da adrenalina que estão sempre presentes.

Esse é um aspecto muito evidente em Always que inclui uma grande quantidade de gravações ao vivo. Isso e o modo como, com o passar do tempo, a sua voz se foi tornando progressivamente mais grave, ganhando maior profundidade...
É um dos aspectos positivos da idade...

Aconteceu o mesmo com a Marianne Faithfull...
Mas eu não precisei de fumar...

Nem de outras ajudas...
Pois, disso também não... (risos)

Há algum tempo, ofereci um dos seus últimos discos a alguém que não a conhecia e que me disse algo em que nunca tinha pensado: que o seu timbre lhe recordava a voz da Juliette Greco...
É um enorme elogio. Mas, nesse processo de "amadurecimento" do timbre da minha voz, embora, essencialmente, se tenha tratado de um processo físico, a verdade é que terá tido alguma coisa a ver com o prestar cada vez mais atenção ao sentido das palavras que canto. Na realidade, nunca gostei do meu registo mais agudo e, embora não se tenha tratado de uma atitude deliberada, subconscientemente, poderá ter havido alguma vontade de procurar canções que exploram mais os registos graves. Ainda bem que assim aconteceu! (2005)

3 comments:

Nunes said...

Caro João,

Apenas uma perguntinha... onde posso encontrar a versão de "When I Get to the Border" (R Thompson) que ela interpretou em 1991 no FolkTejo no Coliseu?

Abraço,

Pedro

João Lisboa said...

Posso estar enganado mas acho que ela nunca gravou essa canção do Thompson...

Nunes said...

Pois, confirmei isso no allmusic. Com as novas tecnologias um tipo habitua-se à ideia de que não há nada que não se repita, mas essa interpretação de uma grande canção do Thompson (antecedida de uma frase imortal da June: "don't be afraid of death") vai mesmo ser uma recordação sem retorno.