29 June 2007

FOGO E GELO



June Tabor - A Quiet Eye

June Tabor já tinha avisado vezes suficientes que não era exclusivamente uma folk-singer. Some Other Time havia sido um álbum de "standards" falhado mas, pelo meio da tradição britânica que ela prefere, mais tarde ou mais cedo, haveria de existir um disco que encontrasse a bissectriz perfeita entre o património tradicional e a história da música popular do século XX que lhe povoa a memória. A Quiet Eye é esse disco e, pouco antes de o século findar, June Tabor oferece a gravação definitiva onde o cruzamento entre os seus "songwriters" favoritos, os clássicos dos últimos cem anos e a herança popular das ilhas encontra a intersecção mais do que perfeita capaz de se ajustar à sua voz como uma luva desenhada por medida.
À frente da direcção musical encontra-se o fidelíssimo pianista e arranjador Huw Warren e para as despesas do acompanhamento foi convocada a Creative Jazz Orchestra (dois trombones, trompete, tuba, contrabaixo, clarinete, clarinete baixo, saxofones soprano, alto e tenor e percussões, mais violoncelo, viola de arco e violino) que, inicialmente, numa série de concertos em 1998, e, agora, em disco, deram corpo a uma das mais imaculadas manifestações de música para canto e "small-big-band" que de Inglaterra já chegaram.



Os arranjos e orquestrações combinam exactamente a precisa economia sonora (nada está lá rigorosamente a mais nem a menos) com a necessidade de puríssima expressão dos temas entregue à voz de June Tabor mais grave, velada (e de veludo) do que nunca e o reportório obedece a uma severa selecção que vai do mais interpretado autor de sempre — o ilustre "trad. arr." — a Richard Thompson, Ewan Mac Coll ou a "I'll Be Seeing You". As secções orquestrais sublinham e enriquecem rítmica e harmonicamente os desenhos melódicos sem nunca, contudo, os afogarem ("Pharaoh", de Richard Thompson, é mesmo um modelo de encenação musical minimalista a colocar em destaque a venenosa denúncia do texto apoiado numa telegráfica melodia) e, sobre o tapete instrumental, paira, imperial, June Tabor, numa daquelas raríssimas combinações interpretativas de fogo e gelo, nos extremos máximo e mínimo de temperatura, capazes de reduzirem a cinzas qualquer assomo crítico.



Cada canção é um instante suspenso no tempo — "A Place Called England", de Maggie Holland, imobiliza a paisagem onde coexistem "rich man in his rolling acres, poorman still outside the gate, retail park and Burger kingdom prairie field and factory farm run by men who think that England's only a place to park their car", "Must I Be Bound?" redescobre um desabafo feminista "avant la lettre" arrancado à tradição, "Waltzing's For Dreamers" é do melhor Thompson "one step for aching, two steps for breaking" de qualquer colheita — e as três mini-suites definem-lhe o gosto: "Out Of Winter/Waltzing's For Dreamers" inventa o fado/blues romântico britânico, "The Water Is Wide/St. Agnes/Jeannie And Jamie" é puro êxtase oceânico "pós-coital" e "The Writing Of Tipperary/It's a Long Way To Tipperary" reescreve a tragicomédia do início do século (Titanic e tudo) em meia dúzia de minutos. Um gato azul da Abissínia olha-nos de frente, June Tabor é divina e nós somos os seus adoradores. (1999)

6 comments:

Anonymous said...

O que seria, hoje, um Top 10 do new folk/new country, João? Permita-me uma pergunta como esta, mas é que só vim a me interessar por folk/country, apaixonado que sou por documentário, após ver No Direction Home - Bob Dylan.

João Lisboa said...

Tenho uma sagrada repulsa por tops. E não sei muito bem o que possa ser a "new folk/new country" (ou "free/psych-coiso", embora às vezes, por facilidade de identificação, lá use o rótulo...).

Mas, assim de repente, diria a genealogia Palace/Bonnie Prince (nem tudo), David Berman/Silver Jews e Micah P. Hinson.

Já dá para uns mesitos...

João Lisboa said...

Ah... e, como "revisão de matéria", é rever o No Direction Home, anotar todos os nomes lá referidos e fazer os trabalhinhos de casa.

João Lisboa said...

Belo blogue o seu, Marcos. Vou linká-lo.

Anonymous said...

Obrigado João ... Belo blogue o seu, digo eu! Pensei que fosse colocar na balança o Mark Olson e o Wilco.... Num é que eu saiba de nada não, é apenas porque já li algo a respeito desse povo/banda, já baixei algo também e gostei bastante. Obrigado mais uma vez!

João Lisboa said...

Wilco/Jeff Tweedy também, sim, sim.