05 May 2007

DAS TREVAS PARA A LUZ



Desesperadamente apaixonado e desesperadamente belo. É como se deve caracterizar North, o novo álbum de Elvis Costello e o primeiro que, algo surpreendentemente, grava para a Deutsche Grammophon. Rente às emoções, escrito como uma colecção que, tematicamente, caminha das trevas para a luz, nele não existe sequer um átomo do veneno da "trademark" costelliana. E ele próprio confessa que estas canções "lhe chegaram" assim mesmo sem que tivesse planeado nada para que isso acontecesse.

When I Was Cruel — que veio a seguir ao disco das canções escritas com Burt Bacharach — era por si assumido como um regresso a um pop/rock agressivo de guitarras. Agora, sucede-lhe este álbum de lentas "torch songs", muito reflexivo e complexo. Gosta mesmo deste jogo de contrastes, não é?
Estas canções vieram até mim, de facto, quando estava a meio da digressão de When I Was Cruel com os Impostors. Eu próprio fiquei surpreendido ao dar comigo a escrevê-las. Mas não tive escolha. Exigiram toda a minha atenção, sentia que, emocionalmente, estavam muito proximas de mim. Utilizei todo o tempo disponível para as escrever em viagem, entre soundchecks, de madrugada, depois dos concertos. Por terem uma natureza mais serena não significa que sejam menos apaixonadas do que, por exemplo, as de When I Was Cruel que é um disco muito cínico.



O álbum tem uma estrutura de suite ou ciclo de canções em torno da ideia da perda e do regresso ao amor. Foi assim mesmo que o concebeu ou isso é apenas um efeito de percepção?
Não decidi previamente que iria compor um ciclo de canções. Comecei a escrevê-las e, a certa altura, parei e dei-me conta de que tinha realizado uma sequência de canções que, obviamente, reflectia uma série de coisas da minha vida pessoal embora muito também tivesse ficado de fora. A vida é muito mais confusa e aborrecida do que isso. Mas sabia que estas canções eram verdadeiras e que haveria quem as compreendesse. Os textos são muito directos embora a música exija que se seja capaz de entrar no seu universo. É por isso mesmo que começa com uma orquestra de cordas para sublinhar bem a diferença em relação a tudo o que até aqui fiz.

Todo o álbum tem uma certa atmosfera de banda sonora para um filme ausente, recordou-me muito o One From The Heart, de Tom Waits e Coppola...
A sério? Isso é um enorme elogio. Talvez se possa ir por aí mas não me parece que pudesse ser outra coisa que não uma sequência de canções, não estou a vê-las dramatizadas. Por si mesmas, já são suficientemente dramáticas.



Melódica e harmonicamente, são canções extremamente complexas, quase "lieder" clássicos que nada têm a ver com a habitual superficialidade pop...
Chegaram até mim exactamente como as ouve. Não foi nenhuma escolha consciente para tornar a linguagem mais ou menos intrincada. Deixei-me ir atrás delas, por vezes, parecem-me muito belas. Acho que são relativamente complexas mas, ao mesmo tempo, bastante acessíveis. Não têm nada a ver com a música de vanguarda em relação à qual é difícil decifrar-lhe a gramática.

De que tradição musical diria que estas canções descendem?
Eu diria que descendem de canções minhas anteriores como "Shot With His Own Gun" ou "Almost Blue". "Shot With His Own Gun" foi a primeira canção que escrevi ao piano. Nessa altura, andava a ouvir muita música para piano, à procura de ideias diferentes do vocabulário do rock que até aí utilizava. Se com a guitarra tendemos a cair sempre nos mesmos padrões, com o piano abre-se todo um outro leque de possibilidades. Também se poderá detectar uma influência daquele tipo de baladas que os músicos de jazz interpretavam pelo final dos anos 30. No fundo, aquela música anterior ao rock'n'roll cujas harmonias se inspiravam na composição clássica ou no jazz. Mas sem pretender imitar nenhuma delas.

Aparentemente, segundo me apercebi, tem-se recusado a explicar a razão de o álbum se chamar North. Porquê?
É apenas um título. As pessoas assumem que o título deve explicar tudo. Mas, para entender um álbum, o que é necessário é ouvi-lo. Chama-se North porque não se chama South! (risos) Quando, em inglês, se diz que alguém "is going south", isso significa que as coisas lhe estão a correr mal. Daí poderá depreender que, ao contrário, vivo um período positivo e optimista na minha vida. O percurso do álbum é das trevas para a luz, da desolação para a felicidade. Chama-se North porque é nessa direcção que eu estou a caminhar física e emocionalmente.


"I Want You" (c/ Fiona Apple)

A sua estratégia de diversificação estética é impressionante: tem composto e tocado com inúmeros músicos, maestros e orquestras clássicas e de jazz, trabalhou com a Anne Sophie Von Otter e com o Michael Tilson Thomas... Essas coisas acontecem-lhe apenas, procura-as, é um jogo, um processo de aprendizagem?
É um pouco disso tudo. Não planeio nada nem tenho grandes ambições. Encontro-me simplesmente com outras pessoas que se tornam amigos ou colegas. Foi assim que aconteceu no ano passado ter escrito uma partitura orquestral de cerca de uma hora para Il Sogno, uma versão de A Midsummer Night's Dream que deverá ser editada no final do próximo ano. Até esse convite me ter sido dirigido nunca imaginaria poder fazer uma coisa dessa dimensão. Mas não tenho nenhum plano secreto para que estas coisas aconteçam.

Como se sente ao ver um álbum seu publicado pela Deutsche Grammophon? Não teme vir a ser avaliado de acordo com os padrões da música clássica?
É um privilégio estar numa editora que parece compreender esta música, estar entusiasmada com o disco e saber como fazê-lo chegar ao público. O que se passa é que, para sobreviver, as editoras clássicas têm de abraçar um espectro de música mais amplo. O público mais velho (e algum do mais jovem) já não se satisfaz com a produção das etiquetas pop. Tudo funciona demasiado em função da imagem, do culto da celebridade e das correntes da moda mais do que da própria substância musical. Mas também uma editora que se limite a publicar indefinidamente novas interpretações de Beethoven não pode ir longe. Daí que se tenha tornado imprescindível ser mais imaginativo acerca do que uma editora clássica pode acolher.



Sem pretender entrar em detalhes privados, encara a possibilidade de vir a escrever canções para Diana Krall?
Ela já interpreta "Almost Blue" nos concertos a qual poderá vir a figurar num álbum. Já escrevemos algumas canções juntos que é o tipo de coisa que acontece quando partilhamos a vida com alguém que também é músico. Mas não sei se ela desejará incluí-las num disco. Algumas são extremamente belas e revelam um lado de maior profundidade quanto ao talento dela. Não desejo revelar o que irá conter esse novo disco em que ela ainda está a trabalhar mas parece-me uma coisa maravilhosa poder amar alguém com quem se pode criar algo em conjunto. (2003)

2 comments:

menina alice said...

Ah! Já bomba! E logo em grande! :)

João Lisboa said...

Yup!... Foi uma cirurgia difícil mas concluída com êxito.