17 April 2007

SOB O CÉU DE BERLIM



Naquele que, de agora em diante, passará a ser designado como o "Manual de Utilização do Mundo Segundo o Método-Tom Waits" (MUMSMTW), no capítulo "concerto", pode ler-se: "Nunca se deve levar a carteira para o palco. Não se pode tocar com dinheiro no bolso. Há que tocar como se se precisasse do dinheiro". E, um pouco mais à frente, em "digressões": "Quando se faz uma digressão é necessário inventar todas as noites novas circunstâncias. Gosto de me transformar: em animais, em insectos diferentes, gosto de uivar, de gritar... Numa sala silenciosa, tem-se demasiada consciência da própria voz. Gosto da minha voz, posso fazê-la pequenina ou enorme. E, se tiver uma laringite ou ficar afónico durante uma digressão, ninguém repara... Cantar uma canção em palco é como tentar beber um copo de água com uma mão artificial. Gostava de descobrir um processo que, para mim, fosse simples. Sete músicos, luzes, todo esse ritual é demasiado esgotante. Apetecia-me acabar com isso tudo. Só precisava de uma máquina de fumos, um megafone e um palco do tamanho de uma mesa. Actuava em parques de estacionamento diante de pessoas que tivessem pago mil dólares sob a garantia de que a sua vida iria ser mudada para sempre".



Pode, então, afirmar-se com um considerável grau de certeza que, no início da semana passada, em Berlim, Tom Waits cantou realmente "como se precisasse do dinheiro": no fim das quase duas horas e meia de concerto, tinha a camisa encharcada em suor. E, cotejando as regras estabelecidas no MUMSMTW com a realidade, deve dizer-se que não, não houve máquina de fumos, três músicos (Marc Ribot - muitas guitarras, banjos, fliscorne -, Larry Taylor - baixo acústico e eléctrico -, Brain - bateria e percussões várias) bastaram e sobraram, o megafone foi exibido logo na primeira canção ("Make It Rain") e não mais levantado do chão e as luzes não podiam ter sido mais discretas.



O palco não seria do tamanho de uma mesa mas, de tão atravancado que estava com toda a traquitana capaz de produzir som que Waits e cúmplices trouxeram lá de casa, chegava a parecer. O local escolhido não foi exactamente um parque de estacionamento — embora o envolvimento da boca de cena do Theater des Westens se assemelhasse bastante ao túnel de entrada de uma mina de carvão — nem os bilhetes custavam mil dólares: a plateia andava pelos 100 euros mas, rapidamente esgotados todos os oito concertos europeus (Antuérpia, Berlim, Amsterdão e Londres), na Internet, mais do que quadruplicaram. E, sim, não será um enorme abuso afirmar que, para quem assistiu, a sua vida poderá ter mudado para sempre.



A transformação, primeiro. Não propriamente insecto-kafkiana mas antes a interiorização de uma personagem mista de corcunda de Notre-Dame, profeta do fim do mundo sem-abrigo e bluesman exumado do saguão da história, de fatinho escuro um número abaixo e "porkpie hat" obrigatório (significativamente ou não, só o tiraria já perto do final para, como que despindo por um instante a máscara, interpretar a sua única "topical song", a "Day After Tomorrow" anti-guerra). Waits cultiva deliberadamente a pose e os esgares do símio espástico, movimenta-se quase permanentemente como uma marionete cujo manipulador insiste em lhe vergar a coluna, estende os braços e saúda o público repetidamente com os dedos em garra. A dramaturgia no interior da qual esta figura singular emerge vive pouco da iluminação (do nocturno funcional às tonalidades-David Lynch, a escorrerem, aqui e ali, para o vermelho-sangue), muito da voz de silicose terminal e do universo paralelo das canções que ela canta e pelo menos outro tanto da encenação sonora — "encenação" é a palavra certa — que Tom Waits (da guitarra, ao piano ou aos teclados arqueológicos — chamberlain? mellotron? calíope?...), Ribot (o inventor imperial da estética da guitarra psicótica), Taylor (a pulsação cardíaca de um encarcerado nas masmorras) e Brain (tudo o que, agredido, vibra) vão caoticamente edificando.



Trata-se, porém, de um caos com uma ordem superior implícita. Aquela, por exemplo, que converte "Sins Of My Father" numa litania sonâmbula de expiação com "insert" final do espiritual "Wade In The Water", "Way Down In The Hole" numa "chain-gang song" pedrada ou faz de "Hoist That Rag" uma rumba demente e inquietantemente eufórica. Em "November" (Ribot em National Steel Guitar) e "Alice", inventa-se um atalho entre Kurt Weill e o fado, entre o cabaret e a "torch song" impressionista, que já antes "All The World Is Green" (com banjo subaquático) deixara entrever.



O caos, ele mesmo, a amaldiçoada desordem do mundo, são a matéria-prima da martelada charanga infernal de "God's Away On Business" ("Digging up the dead with a shovel and a pick, it's a job, it's a job, bloody moon rising with a plague and a flood, join the mob, join the mob!") ou da obstinada fanfarra de espectros de "Misery Is The River Of The World" ("The higher that the monkey can climb, the more he shows his tail, call no man happy 'til he dies, there's no milk at the bottom of the pail"); mas Waits concede-nos uma pequena pausa no "carpet bombing" de pessimismo antropológico (algures no MUMSMTW, em "espécie humana", lê-se: "Posso perfeitamente dizer que a espécie humana nada tem de amável mas estou sempre à espera que me surpreendam. Sobreponho umas coisas a outras com sons e imagens. Gosto de ligar três rádios ao mesmo tempo. Provavelmente faço o mesmo com as pessoas quando olho para elas. Vejo-lhes as asas de anjo mas também o cabelo a arder") para um momento de "comic relief"... muito à sua maneira: a história de Johnny Eck (aliás, "Table Top Joe", onde aproveita para comandar o público num côro de forçados das galés), o monstro-anão sem membros, ou aquela outra retirada do seu "National Geographic" surreal acerca da aranha-macho que estende uma longa pata para tocar um acorde nos fios da teia que apenas a fêmea consegue escutar...



Suponho que, de certa maneira, isto deverá constituir a concretização de um dos pontos do programa estético-científico a que, noutro passo do MUMSMTW, Tom Waits se refere ("O que eu gostava era de ir para o espaço com uma banda e colunas no exterior da nave para ver se conseguíamos comunicar. Escolhia uma banda mesmo esquisita e desenvolvíamos o nosso próprio programa espacial") e que terá sido emitido com pleno êxito a partir do céu sobre a "interzone" de Berlim. É verdade, os alemães são, afinal, capazes de exteriorizar emoções e ruidosamente obrigaram Waits a voltar por duas vezes ao palco para deitar abaixo as poucas pedras que restavam de pé. Primeiro com "Metropolitan Glide" (e o regresso do prodigioso "beatbox poet musician" de Vancouver, CR Avery, que tocara também, logo no início do concerto, em "Don't Go Into That Barn"), "Get Behind The Mule" e "Trampled Rose", depois — alapado a um piano vertical e, dir-se-ia... quase humano —, "Invitation To The Blues" e "House Where Nobody Lives".



A dar-se o caso de, fugazmente, aquele-de-que-não-falaremos não se encontrar "away on business", desta digressão poderá resultar um DVD onde, talvez, "Top Of The Hill", "Lost At The Bottom Of The World"(um inédito escrito para o documentário "Long Gone", de Jack Cahill e David Eberhardt), "Dead And Lovely", "Singapore", "Jockey Full Of Bourbon", "Kommeniezuspadt", "Walk Away", "Johnsburg, Illinois", "Lost In The Harbour" ou "Lucky Day" — que tocou nos outros dois dias de Berlim e em Antuérpia mas que substituiu por outras no concerto de dia 16 — possam igualmente constar. Porque, já sabemos, claro, "é necessário inventar todas as noites novas circunstâncias". Ou, citando pela última vez o MUMSMTW, criar as condições necessárias para que um determinado processo de captura resulte bem: "Estou convencido que desenvolvemos uma antena para as canções e que elas gostam de andar à nossa volta. Trazem umas amigas com elas e, quando damos por isso, estão por ali sentadas ao pé de nós, a beber-nos a cerveja e a dormir no chão da sala. E, ainda por cima, usam o nosso telefone... São umas sacaninhas ingratas e ordinárias..." (2004)

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