NOMEAR O TERRITÓRIO
Quando Will McCarthy (pai de Dawn McCarthy) desistiu da sua profissão de corretor da Bolsa, celebrou essa libertação com um poema: "I no longer wish to compete. I withdraw to niches unoccupied, to hidden places between the rocks or to the porches of high bound caves, or to theaters within hollow trees, or to any other place where the zeal of silence might be". O que, se nos poderia fazer imaginar que, dentro de cada escravo engravatado do Grande Templo do Capital, vive um poeta pagão à espera do momento de quebrar as grilhetas, tratando-se de um elemento do clã McCarthy já não será algo tão inesperado.
Sim, porque gente como Dawn McCarthy (e o companheiro Nils Frykdahl e o resto da tribo que integra os Faun Fables) não aparece de geração espontânea. Por alguma razão, o episódio anterior das fábulas se chamava Family Album e não há-de ser outro acaso que, à semelhança de "I No Longer Wish To", o texto de uma das canções ("Earth's Kiss") seja co-assinado pela mãe, Michelina. Todas as peças se encaixam perfeitamente no puzzle: The Transit Rider começou por ser uma peça de teatro musical — descrita como um encontro entre Tom Waits, Frank Zappa, The Twilight Zone e Andrew Lloyd Webber (ou "gipsy Brechtian avant-folk"), onde uma mulher que viaja de metro fantasia um mundo paralelo ao da selva urbana nas entranhas da qual se desloca — e, agora, segregou a sua banda sonora enquanto "song cycle" autónomo.
(álbum integral)
Tal como acontecia já com Family Album, o universo sonoro de McCarthy/Frykdahl é omnívoro e em tudo diferente da sua dieta: Dawn, de canção em canção, tanto faz pensar em Kristin Hersh como em Shirley Collins, Marlene Dietrich, Mimi Goese ou Grace Slick, a música tritura Kurt Weill, a folk-britânica e leste-europeia, Smetana, Buffy Sainte-Marie, Stravinsky, a aura negra de Nico e Bartók, até ao nível das sub-partículas. Num glorioso exercício de ecletismo, coloca frente a frente Cristo e o seu amante, Pã (no tradicional folk inglês "House Carpenter"), recorre às composições do polaco Zygmunt Konieczny ("Taki Pejzaz/Such A Landscape"), recruta sem problemas um tema da "singing nun", Soeur Sourire ("I'd Like To Be") e acaba citando Martin Heidegger: "The song still remains which names the land over which it sings". Os Faun Fables são uma raríssima preciosidade da música contemporânea e The Transit Rider a sua segunda obra-prima indiscutível. (2006)
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