11 March 2007

A REPÚBLICA INVISÍVEL


No princípio, a folk era o “estado de natureza” da música tal como a “alma do(s) povo(s)”, bacteriologicamente imune à contaminação cultural das elites, pura, espontânea, anónima e colectivamente a criaria. Era um mito belo e amável, bem de acordo com o espírito romântico oitocentista e os vários arrebatamentos nacionalistas da época – sempre prontos a ressurgir e a enxergar “celtismos”, “arabismos” ou “judaísmos” mesmo onde eles nunca existiram – e com o do próprio inventor (em 1846) da designação “folklore”, o inglês William Thoms, empenhado em encontrar um termo que melhor caracterizasse o que, então, era conhecido como “popular antiquities”. A “alma do povo” era, de facto, muito menos virginal do que se supunha (a comunicação entre a cultura dos “de cima” e dos “de baixo” sempre se processou em ambos os sentidos) mas devemos, sem dúvida, aos diversos impulsos “folcloristas” – de Cecil Sharp, Bartók, Giacometti, A. L. Lloyd, John e Alan Lomax ou Edward Bunting – a recolha e inventário de um precioso património da música popular/tradicional (aquilo a que, no final do século XX, por mero expediente de “marketing”, se viria a chamar “world music”) que, com raras excepções, apenas sobreviveria através de tais arquivos e do interesse que músicos e intelectuais urbanos lhe dedicariam. 


Harry Smith (1923-1991) não foi um desses recolectores canónicos: pintor, cineasta experimental, antropólogo, alcoólico, toxicómano, cabalista, adepto de Aleister Crowley e da O.T.O., diletante, boémio, companheiro de aventura da “beat generation”, inventor (segundo Allen Ginsberg) dos “light-shows” psicadélicos do Fillmore West, de S. Francisco, teósofo e ocasional vagabundo sem-abrigo, em vez dos convencionais “field recordings”, preferiu reunir uma colecção de dezenas de milhares de discos (raros e esgotados) de 78 rotações de cajun, folk, blues, country, hillbilly, gospel e jazz, a partir da qual, em 1952, compilou os seis LP de uma Anthology Of American Folk Music em três volumes (originalmente seriam quatro, tendo o último apenas sido editado em 2000) que seria publicada pela Folkways, de Moses Asch. Abarcava o período entre 1926 e 1932, estruturava-se em torno de um conceito esotérico pelo qual, a cada álbum, correspondia uma cor (azul, vermelho, verde e amarelo), um elemento (água, fogo, ar e terra) e um tema (Ballads, Social Music, Songs e Union Songs), ficou muito longe de constituir um êxito de vendas, mas cada uma das suas 84 faixas actuaria como um potente detonador de todos os “folk revivals” que se lhe seguiriam – do dos anos 50/60 ao recente “free/freak/psych folk”.



A todos os músicos que a veneraram e devoraram enquanto autênticas “sagradas escrituras” da tradição popular norte-americana (Dylan, Seeger, Jerry Garcia, Roger McGuinn, Dave Van Ronk, John Fahey... a lista é interminável), John Pancake – o colega de faculdade que iniciou Bob Dylan no culto – chamaria “a Irmandade da Antologia” e Greil Marcus referir-se-ia extensamente a ela como a Invisible Republic (título do seu livro de 1998 sobre as Basement Tapes, de Dylan com a Band) de uma “old, weird America”. O que ajuda a compreender por que razão, em Agosto de 2003, na “Wire”, David Keenan baptizou o então emergente “free folk” como “new, weird, America” e também a génese da actual caixa The Harry Smith Project: The Anthology Of American Folk Music Revisited, segundo ensaio conceptual de Hal Willner em 2006, após o igualmente magnífico Rogue’s Gallery: Pirate Ballads, Sea Songs and Chanteys. O plano de acção foi idêntico em ambos: toque a reunir dos suspeitos do costume – desta vez, uma lista de cerca de três dezenas que inclui Beck, Wilco, Richard Thompson, David Thomas, Elvis Costello, Sonic Youth com Roswell Rudd, Nick Cave, Van Dyke Parks, Lou Reed, Marianne Faithfull, Mary Margaret O’Hara, Bill Frisell ou Don Byron –, luz verde para a dose de iconoclastia ou reverência que cada um prefira e distribuição do reportório/Anthology por todos para, neste caso, ser registado, ao vivo, em concertos (de cinco/seis horas!) de Londres, Nova Iorque e Los Angeles.
 

Nick Cave - "John The Revelator"

Os DVD incluem imagens dos espectáculos (com actuações não presentes nos CD), alguns filmes de Harry Smith, um documentário sobre a história da Anthology e, no conjunto, constituem precisamente aquilo a que é obrigatório classificar como memorável. (2007)

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