04 September 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XI)



"Por vezes, a forma normal de falar das pessoas é poesia. Talvez a questão esteja em saber o que é a poesia. Para mim, estas canções são como filmes para os ouvidos e, se for capaz de pintar um pequeno quadro para os ouvidos com palavras, ainda bem, gosto de palavras. Gosto de as recortar e de encontrar formas diferentes de dizer o mesmo. Para mim, é mais importante a forma como soam porque, em última análise, é preciso deitá-las na sopa e temos de decidir se se trata de um tomate ou de um osso. É isso que tem de se fazer com a escrita. Deixo-me enfeitiçar e tudo se torna fácil. Não me esfalfo a trabalhar, salto para dentro das canções. Estou convencido que desenvolvemos uma antena para as canções e que elas gostam de andar à nossa volta. Trazem umas amigas com elas e, quando damos por isso, estão por ali sentadas ao pé de nós, a beber-nos a cerveja e a dormir no chão da sala. E, ainda por cima, usam o nosso telefone... São umas sacaninhas ingratas e ordinárias...

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"Sou muito pouco convencional. Tenho impulsos rítmicos muito fortes mas esse não é o meu mundo. Faço as coisas da maneira que sinto. Pego em qualquer coisa, bato-lhe e, se gosto do som, continuo. É assim que, por vezes, esta minha abordagem idiota serve a música. É como se fosse uma cómoda com três pernas: eu sou os quatro livros que se põem por baixo e a impedem de caír. Há imensos percussionistas excelentes com grandes capacidades. Mas eu prefiro coisas que não foram concebidas para ser instrumentos musicais. Coisas em que nunca ninguém bateu antes. Ando sempre à procura delas. Coisas que ficaram perdidas algures no campo ou que se encontram na sarjeta. Trago-as todas para casa.

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"O que eu gostava era de ir para o espaço com uma banda e colunas no exterior da nave para ver se conseguíamos comunicar. Escolhia uma banda mesmo esquisita e desenvolvíamos o nosso próprio programa espacial. A minha sensação é que devíamos tentar comunicar através da música. Estamos a enviar aquelas coisas que mostram a anatomia humana, o nosso simplicíssimo sistema numérico, a nossa maquilhagem científica mas o que eu acho é que devíamos levar um grupo. Acredito que exista vida inteligente extraterrestre mas, como somos nós quem define o que é a inteligência, provavelmente ela estará para além da nossa capacidade para nos apercebermos dela. O que me leva a pensar que eles podem já estar entre nós e não somos capazes de os identificar ou de compreender que estão aqui.

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"Em estúdio, há certas variáveis que é possível controlar mas é isso mesmo que é frustrante para mim quando lá passo muito tempo. Estou sempre a reparar em coisas que, há uma hora, ainda estavam vivas e, pouco depois, delas já só resta sangue espalhado pelas paredes, as sacanas nunca mais hão-de respirar outra vez. E quem é o responsável? Tu! Claro que aponto logo para um dos músicos e acuso-o de homicídio. Faz-me pensar que se tratou de uma intervenção cirúrgica em que se perdeu o doente e saio da sala furioso como os médicos também devem fazer... É como uma expedição que não consegue ir até ao fim, um barco carregado de homens. É sempre diferente. Num grupo existe sempre um inconsciente colectivo pronto a funcionar se os soldados são dados a confrontos. Mas, por vezes, é preciso enfrentar as nossas próprias limitações e andar para a frente. É desse modo que acabamos por ir ter a novos lugares.

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"A minha abordagem da música continua a ser muito crua. Não leio música e não uso a notação tradicional. Desenvolvi uma estenografia básica, uma espécie de hieróglifos, que utilizo se vou de avião, de comboio ou de automóvel e não tenho nenhum instrumento por perto. Mas também dá muito jeito pegar num instrumento que nunca se tocou e abordá-lo do modo que uma criança faria. Aí, não há certo nem errado e isso permite uma grande liberdade. Por outro lado, os dedos possuem uma inteligência própria e objectivos para onde se querem dirigir. Às vezes, chegam lá antes de nos darmos conta disso. É quase como escrever à máquina.

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"O que é que escrever canções com a minha mulher lhes acrescenta? Um chicote e uma cadeira. A Bíblia. O Apocalipse. Foi educada como católica, está a ver, sangue, álcool e culpa. Desmaterializa-me de modo a que eu não não esteja interminavelmente a escrever a mesma canção. Que é o que imensas pessoas fazem, eu incluído.

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"Há três semanas, fui a Memphis, a um casamento. Aproveitei para ir a Graceland. Aquilo é realmente uma feira inacreditável. Era preferível ir lá para ver a cabeça do Elvis em pickles dentro de uma garrafa. Assim sentia que o dinheiro que paguei tinha valido a pena. Fomos até ao túmulo e o meu filho mais pequeno disse: 'Era giro se o desenterrassem e fizessem um colar com os dentes dele'. Acho que nunca ninguém pensou nisso: um colar com os dentes do Elvis.

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1992

(2007)

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