20 March 2007

REGISTOS DA CAIXA NEGRA (I e II)


Black Box Recorder - The Facts Of Life (2000)

É exactamente o que se pode ler na capa: os factos da vida registados na caixa negra de Luke Haines (ex-Auteurs e Baader-Meinhof), John Moore e Sarah Nixey como revelador requintadamente cínico e falsamente ingénuo do modo de vida "moderno" traduzido para uma pop de cetim e veludo de doces metáforas venenosas, vozes sussurradas e melodias sordidamente celestiais. Existem, é claro, antecedentes óbvios, de Serge Gainsbourg/Jane Birkin a Momus/Laila France, David Lynch/Julee Cruise/Badalamenti ou (no cenário e atmosfera candidamente fétidos) os muito proximos Pulp. Para não falar, naturalmente, em England Made Me (cujo lema era "Life is unfair, so kill yourself or get over it") dos próprios Black Box Recorder cuja música finalmente destilava o britpop/rock ainda derivativo e pouco focado — mas já seriamente perturbado — dos Auteurs.



Agora, porém, tudo se passa como se David Lynch se tivesse decidido a escrever um argumento sobre a suposta inocência adolescente a partir de uma banda sonora daquele "easy listening" que, nos anos 50, celebrava a suave felicidade imaginária da "straight life". Isto é, "The Art Of Driving" e "The English Motorway System" não são (decididamente, não são) temas a incluir num CD-oferta da revista do ACP mas qualquer coisa um bocadinho mais inquietante e vagamente pedófila. "Sex Life" é o argumento obsessivo de um sonho húmido cantado pelo côro de um colégio de raparigas, "Weekend" desenha o anestesiado cenário da manhã de sábado que se segue a uma noite de sexta suspeitamente muito pouco doméstica ("Take your bank account, was it worth it to spend so much on conversation, never mind the cost, there's nothing lost") exactamente simétrico do "ennui" normalizado de "Straight Life" ("home improvements in our dream home, visiting sites of local interest, walking the hillsides, playing games, bringing back souvenirs") e do escabroso "Gift Horse" onde, sob um manto de vozes angélicas, "they're digging up human remains in Notting Hill behind the screens, behind the wall, in our back garden".



E que, inevitavelmente, encerra com o "Goodnight Kiss" para mais um romance falhado de subúrbio ("turn the lights out before you leave") que soa menos como o fim de um conto de fadas perverso do que como um epitáfio para o admirável mundo contemporâneo. A banda sonora para o sucessor de Twin Peaks que ainda está por realizar.



Black Box Recorder - Passionoia (2003)

"A pint of milk, a loaf of bread, a magazine on special offer, check the weather forecast, buy a new umbrella, send a text message, take a shower, meet me in the park in half an hour, these are the things that keep us together". O lar ideal, as delícias do amor doméstico, a magia dos pequenos nadas? Não, frio, muito frio. Como em todos os discos dos Black Box Recorder, Luke Haines está só a bordar sobre veludo negro a paisagem arrepiante do inferno pequeno-burguês em que ele tanto gosta de ferrar o dente.



E o resto da pirâmide social também não perde pela demora, há de tudo para todas as classes A, B, C, D, e E: "The New Diana" ("I want to be the new Diana, lying on a yacht, reading photo magazines") estabelece os requisitos necessários para as candidatas a nova "princesa do povo", "British Racing Green" é sociologia de bolso em concentrado sulfúrico para aguarela de caixa de chocolates com "cottages by the sea", sonhos de reforma antecipada e gin anestésico, "GSOH Q.E.D." radiografa o universo das "mensagens pessoais" de jornal, "Andrew Ridgley" atira-se às pop stars de plástico em decadência e, depois, ainda há manuais de consulta rápida como "Girl's Guide For The Modern Diva" e várias outras necessidades básicas da vida moderna.



A receita estética para o traçado desta geografia do paraíso-Prozac na versão BBR é simples e eficaz: "synth-pop" de feição "eighties" reforçadamente "glitzy" e irónico, afrancesamento das atmosferas "à la Gainsbourg" e a voz mimada de "daddy's little rich girl" de Sarah Nixey para sublinhar a teatralidade. Na capa, de bikini, ela bronzeia-se na "chaise longue", à beira da piscina, enquanto um corpo afogado boia à superfície da agua. Como dizia o outro, "there's too much apathy in the world but then, who cares?". Tal qual os anteriores England Made Me e The Facts Of Life, praticamente perfeito.

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