14 August 2019

CRIAR UM MUNDO SONORO


Os filmes da assombrosa experimentalista ucraniano-americana Maya Deren (1917-1961) e a explosiva guitarra eléctrica de Thurston Moore (Sonic Youth) encontraram-se num palco, durante o Festival de Curtas de Vila do Conde. Horas antes, Thurston falou sobre as várias etapas desse processo, as suas dúvidas e intenções. 

    Como foi o princípio desta aventura? 
Tudo começou há dois anos, em Paris, quando o Museu do Louvre me convidou para uma série de colaborações com outros músicos. Numa das noites, foram exibidos filmes da Maya Deren enquanto eu tocava com Stephen O’Malley, dos Sunn O))). Depois, alguém teve conhecimento disso e repeti a experiência já sem o Stephen. Desta vez, não estou, realmente, a improvisar, interpreto uma peça musical previamente composta. 

    Pareceu-lhe necessário algo mais estruturado? 
A abordagem improvisada parece sempre mais interessante devido aos elementos de acaso e surpresa. Na verdade, enquanto improviso não estou a ver o filme, deixo-me levar pelos sons, e apenas paro quando me apercebo de que o filme chegou ao fim. Por vezes, perguntam-me “Quando tocou daquela forma, tinha a noção exacta de que ia acontecer aquilo? Parecia mesmo perfeitamente sincronizado...” Sim e não... 

    ... portanto, há sempre uma possibilidade de intersecção significativa entre a narrativa visual e a sonora? 
Há anos, com os Sonic Youth, criámos música para a companhia de dança de Merce Cunningham, peças baseadas em operações aleatórias nas quais não reagíamos verdadeiramente à dança mas nos guiávamos por uma partitura de John Cage. 

    E a dança reagia à música? 
A dança assentava na sua própria lógica coreográfica. 

    Podiam estar, então, em salas diferentes? 
Podíamos, claro! Foi uma experiência de que gostei imenso e me permitiu compreender como John Cage e Merce Cunningham colaboravam. Mas, aqui, em Vila do Conde, não gostaria que as pessoas imaginassem que estou a improvisar, é uma composição de uma hora para guitarra eléctrica de 12 cordas que não concebi em função das imagens mas que tocarei durante a projecção. No "soundcheck", procurei ir estando atento à forma como algumas sequências de acordes correspondiam ao que se passava no ecrâ. E correspondiam, de facto! Isso incomoda-me: não desejo que o filme me influencie! Por outro lado, tratando-se de 4 filmes, preciso de saber quando termina um e começa o seguinte. No fundo, não interessa: poderia perfeitamente tocar de olhos vendados! (risos) 

Meshes of the Afternoon

    Numa das “bíblias” da film music – Unheard Melodies, de Claudia Gorbman – uma das ideias fundamentais é a de que qualquer sequência musical aplicada a qualquer sequência de imagens faz sempre um sentido. E conta como Jean Cocteau encomendava a George Auric música para as cenas A, B ou C de um filme e, depois – apostando na “sincronização acidental” – usava a música “errada” nas cenas “erradas”...  
É realmente fascinante como todo esse processo afecta a nossa sensibilidade e a leitura que fazemos de um filme, por vezes, reforçando e sublinhando literalmente ambientes mais melancólicos ou eufóricos... 

    .... ou funcionando exactamente ao contrário como na sequência de abertura de The Shining em que a música nos “mostra” o oposto do que estamos a ver... 
É verdade. Gostaria muito de ter mais oportunidades de compor música para filmes. Os Sonic Youth colaboraram com o Olivier Assayas (Demonlover), também no primeiro filme do James Mangold (Heavy)... mas é algo de que tenho saudades e vontade de continuar a fazer. 

    Mas não se preocupa demasiado com a história da "film music"... 
Não passo o tempo a ler acerca disso, desconhecia, por exemplo, esse livro de que falou. Mas tenho alguma noção da história do cinema e sempre tive muita curiosidade por aqueles realizadores que recorrem sempre aos mesmos compositores... 

A Study in Coreogrphy for Camera (experimental Soundtrack: Remo De Vico)

    Como os Coen com Carter Burwell... 
Conheci-o em Nova Iorque, no início dos anos 80... 

    Ou David Lynch com Badalamenti, ou Hitchcock com Herrmann... 
Estava a pensar também em Claire Denis que, em todos os filmes, seja qual for a natureza deles, tem banda sonora dos Tindersticks. Vejo muitos filmes e a minha percepção do modo como a música neles actua é muito aguda. Conheço a forma como tudo se estrutura numa banda sonora. Não me interessa é trabalhar desse modo. Foi muito interessante quando trabalhámos com o Olivier Assayas: pedia-nos que lhe enviássemos música e, ao escutá-la, isso determinava a forma como iria filmar uma determinada cena, contribuía para lhe definir melhor as ideias. 

    Exactamente como aconteceu com a banda sonora de Morricone para Once Upon a Time in the West que o Sergio Leone fazia ouvir no "set" durante as filmagens. 
Há tempos, vi no British Film Institute um filme mudo francês dos anos 20 com um pianista que o acompanhava ao vivo. Tinha interiorizado por completo as mudanças de atmosfera e de intensidade do filme, reagia instantaneamente às deixas visuais. Foi óptimo mas, no fim, fiquei com a sensação de não terem, realmente, acontecido surpresas. Gosto mais, por exemplo, quando o Gus Van Sant, em filmes acerca de adolescentes americanos, usa música electrónica e "musique concrète" e, através dela, cria uma sensação de alienação, de não saber onde nos encontramos exactamente. 

The Witch’s Cradle (música: Enric Chalaux)

    Nos casos em que improvisa o acompanhamento musical para um filme que já conhece, mesmo não estando a olhar para o ecrã, as imagens que recorda determinam aquilo que vai tocar? 
Se estou a improvisar, posso perfeitamente estar a ver o filme e ir tocando ao mesmo tempo. Mas isso tende a tornar-se um pouco óbvio, será sempre apenas um resultado da minha reacção ao que acontece no ecrã. 

    E sempre um segundo em atraso... 
Exacto.

    Já conhecia estes filmes da Maya Deren?
Dos que vão ser apresentados aqui (Meshes of the Afternoon, 1943, At Land, 1944, Ritual in Transfigured Time, 1946, A Study in Choreography for Camera, 1945, e The Witch’s Cradle, 1943), já conhecia Meshes of The Afternoon e At Land. Este é o tipo de desafio que adoro, podem convidar-me sempre. Vou repetir este programa em Melbourne e não estou ainda certo se vou voltar a esta peça ou se vou improvisar. Ou ambas. E não sei se isso importa muito: estou a criar um mundo sonoro, mas não faço a menor ideia se a Maya Deren apreciaria as liberdades que tomo durante a exibição dos filmes... quem sabe se não o sentiria como uma agressão à sua obra... Os Sonic Youth, em 2003, realizaram um concerto de música improvisada nos Anthology Film Archives de Nova York, sobre imagens de filmes de Stan Brakhage. A maioria das pessoas gostou do concerto mas houve alguns puristas que argumentaram que o Brakhage nunca desejou que os filmes fossem sonorizados. Claro que estávamos a alterar a natureza dos filmes e, se calhar, a ir contra as intenções dele. Poderá dizer-se que levamos essa ideia longe de mais. Mas o que é longe demais? O objectivo nunca será roubar o primeiro plano aos filmes mas, sim, complementá-los.

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