02 April 2019

VIAGEM AFORTUNADA


Poderá ser uma questão de terminologia mas não é apenas uma questão de terminologia: se existe muito em comum naquilo que é (ou foi) designado por “alternativo”, “indie” ou “underground” – apesar de, sob o chapéu de chuva de “underground music”, a Wikipedia listar cerca de meia centena de sub-géneros, vários deles também densamente ramificados –, tanto o contexto em que surgiram como as características especificamente musicais obrigam a encarar cada um de forma distinta. Terá sido proferida naquela inimaginável pré-história em que não existia internet e o mundo era consideravelmente diferente, contudo, a afirmação de Frank Zappa “the mainstream comes to you, but you have to go to the underground" continua a servir perfeitamente para localizar o nó da questão: liberdade criativa, a máxima autonomia em relação à indústria e um vivo desejo de experimentação geraram sempre música que é necessário querer descobrir e em que não se tropeça ao virar da esquina.

Julie Driscoll, Brian Auger & The Trinity - "This Wheel's On Fire" (B. Dylan) + outras versões aqui

O “underground”, no final dos anos 60 do século passado, não era, porém, exclusivamente um assunto musical mas, em grande medida, social e político: nascido no caldo de cultura da ameaça nuclear da Guerra Fria, da contracultura hippie/psicadélica, do Maio de 68, da guerra do Vietname e dos movimentos pelos direitos cívicos, reflectia tudo isso sob os mais desvairados ângulos. Observando o lado de cá do Atlântico (nos EUA, o panorama era semelhante) pelo prisma do cada vez mais indispensável arquivismo histórico da Cherry Red, nos 3 CD e nas 52 faixas de Revolution: Underground Sounds of 1968, é impossível não reparar como o radicalismo anarco-freak-punk dos Deviants, de Mick Farren – também guerrilheiro activo na "free press" britânica via “International Times” e “OZ” –, convivia pacificamente com o proto-freak-folk da Incredible String Band, o dadaísmo de raiz Monty Python da Bonzo Dog Doo-Dah Band, o surrealismo pedrado e barrettiano dos Pretty Things ou o flamejante pop-jazz de Julie Driscoll, Brian Auger & The Trinity. Um nicho ecológico para cuja riquíssima biodiversidade contribuiriam igualmente os ainda embriões dos Genesis, Van Der Graaf Generator, King Crimson, Jethro Tull e Gentle Giant. Houve, inevitavelmente, muitos convertidos de última hora à causa que, de um dia para o outro, despiram o fato-macaco de transpirados trolhas dos “blues brancos” ou da pop para adolescentes afogadas em estrogénios e vestiram o uniforme “underground” (Status Quo, The Move, Ten Years After). Mas, com o “captain, my captain” John Peel ao leme, a viagem seria afortunada.

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