08 May 2018

LES PORTUGAIS SONT TOUJOURS GAIS (LXXIV)

Turquia 2005 (“world music” de Holiday Inn)

Conhecem Jacqueline Boyer? Séverine? Bobbysocks? Eimear Quinn? Sertab Erener? Jamala?... É muito provável que não. Mas foram todos vencedores do Festival da Eurovisão. Respectivamente, em 1960, 1971, 1985, 1996, 2003 e 2016. Na verdade, é uma amostra representativa da esmagadora maioria dos concorrentes e das 65 canções vencedoras desse concurso desde 1956, das quais, sem um pingo de exagero, pode dizer-se que não entraram para a história. Como informa a Wikipedia, “vencer o Festival da Eurovisão proporciona uma oportunidade para os vencedores rentabilizarem o sucesso e lançarem ou reforçarem uma carreira internacional. Contudo, poucos se tornaram grandes estrelas mundiais”. Em rigor, apenas dois: os ABBA, em 1974, e Céline Dion, em 1988 (France Gall, Lulu ou Sandie Shaw não contam uma vez que já tinham um percurso anterior a que a participação no concurso nada acrescentou). Justissimamente ignorado pela indústria discográfica, salvou-o da extinção por irrelevância ter sido adoptado enquanto espaço de celebração transnacional da comunidade LGBT e, simultaneamente, haver-se transformado no grande momento "camp"/"kitsch" anual, oportunidade para a exibição do mais cintilante pechisbeque, no qual imperavam os valores estéticos do "slut power" de Leste, da "exotica"-de-Club-Med ou do "hotel lounge glamour". 

Alemanha 2009 ("guest star" Miss Dita Von Teese)

Nicho ecológico ideal para a proliferação de Spice Girls bálticas, romantismos de "trottoir", punkóxungas balcânicos, "soft-porn" étnico, “world music” de Holiday Inn e corpos de baile de legionários romanos, onde, na edição de 2009, nem sequer faltou a participação de Miss Dita Von Teese, de chibatinha na mão, a acrescentar um picante "kinky" à canção alemã. A glória seria alcançada com o triunfo das transexuais israelita e austríaca Dana International (1998) e Conchita Wurst (2014) mas, desde o início da actual década, os mais autênticos valores "kitsch" que lhe vincavam a identidade foram sendo trocados, sem ganhos, pela uniformização industrial, entre a baladona xaroposa e a "playlist" de discoteca suburbana. Foi sobre os escombros deste império arruinado que, no ano passado, Portugal acrescentou mais um nome aos (quase todos) anónimos anteriores. De imediato, o presidente da república anunciou que “a vitória deu mais 20 centímetros aos portugueses” e, no Parlamento, por unanimidade, foi aprovado um voto de saudação aos heróis de uma pátria em êxtase. Como dizia Charles Lecocq, na ópera-bufa Le jour et la nuit (1881), “Qu’il fasse beau, qu’il fasse laid, au mois de Décembre ou de Mai, les Portugais sont toujours gais!”

4 comments:

Ricardo A. P. Reis said...

O Debord dizia que o barroco era um período em que o homem perdeu o seu centro. O que diria então de nós, portugueses, que depois de sabermos pelo PR que não há extrema esquerda em Portugal e que agora, imagine-se, já nem direita temos?
https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/jaime-nogueira-pinto-nao-ha-direita-nenhuma-em-portugal

Será que vivemos um neo-neo-barroco personificado pelo kitsch (camp?) do festival da Eurovisão? Que até se diz que irá ter Israel como vencedor...

João Lisboa said...

Mas, se não há extrema esquerda nem direita, resta apenas o (extremo) centro...

O kitsch israelo-eurocoiso já ganhou por várias vezes. Nomeadamente, aqui: http://lishbuna.blogspot.pt/2008/09/to-mix-and-remix-nation-on-9-may-1998.html

alexandra g. said...

Do Debord que li, compreendo o que ali li, mas:

o barroco serviu para centrar a atenção numa igreja em crise, precisamente, aquilo a que chamamos "o ruído exterior" em ameaça. Se fecharmos os olhos, tudo isso desaparece, fica, contudo, o belo movimento das formas.

Gosto de ambos: Debord e Barroco :)

João Lisboa said...

Debord e Barroco (musical), sim.