09 May 2017

REVOLUÇÕES 



Em fundo negro, lê-se: “Toda a arte é sujeita a manipulação política. Excepto aquela que se exprime no idioma dessa mesma manipulação”. Corte: em câmara lenta, um baterista ergue as baquetas e fá-las descer sobre o instrumento. Mas, no preciso momento em que percute as peles, o que se escuta é a sonoridade de um piano e, segundos depois, uma voz que, de modo solene e enfático, desenhará a melodia e as palavras de "The Sound Of Music", em contraponto com imagens de guerra, explosões nucleares, manifestações de massas, desfiles militares e um "pot-pourri" iconográfico de propaganda comunista norte-coreana, intercalada com "inserts" dos anos da Beatlemania, de Bill Haley, Bowie e Michael Jackson. É a porta de acesso a Liberation Day, documentário de Morten Traavik e Ugis Olte, que dá conta do concerto dos eslovenos Laibach, a 15 de Agosto de 2015, em Pyongyang, capital da República Popular Democrática da Coreia, por ocasião do 70º aniversário da vitória sobre o Japão.



Mais exactamente, o primeiro concerto de uma banda de rock ocidental no que um dos elementos do grupo definirá como “literalmente, outro planeta”: um país submetido a um cruel despotismo tragicómico no qual os media oficiais (e únicos) anunciam sem escândalo que foram encontrados vestígios do unicórnio do rei Tongmyong e que a ciência local descobriu uma vacina única contra o Ébola, HIV, Sars e Mers; uma distopia alucinada onde o “amado líder”, Kim Jong-un, é livre de assassinar um tio por este ter “ousado sonhar sonhos diferentes” e, aquando da morte de Kim Jong-Il (pai de Kim Jong-un e filho de Kim Il-sung), a Korean Central News Agency noticiou que, nesse dia, os pássaros choraram, nos lagos, o gelo estalou, as tempestades cessaram, os grous persignaram-se e as montanhas cobriram-se, sobrenaturalmente, de escritos do falecido timoneiro. Porquê, então, abrir as portas da República Popular aos Laibach, sobejamente conhecidos pelo escorregadio jogo de ambiguidades com a estética nazi? 



No documentário, Slavoj Žižek explica: “Todos os movimentos dissidentes da Jugoslávia de Tito criticavam o regime mas aceitavam as suas premissas fundamentais. Com os Laibach – fundados em 1980, um mês após a morte de Tito –, é como se eles devolvessem ao regime a própria mensagem sob a forma mais nua e crua. A atitude realmente subversiva não é a da crítica violenta nem a do distanciamento irónico mas a da sobre-identificação: tomar os valores do sistema muito mais a sério do que ele proprio o faz e expô-los à luz do dia”. Na verdade, a "Gesamtkunstwerk" dos Laibach, nas suas encenações brutalmente estentóricas capazes de transformar "The Sound Of Music" ou "Life Is Life", dos infames austríacos Opus, em empolgados hinos pagãos exacerbadamente riefenstahlianos (mas um ínfimo passo ao lado e facilmente seria realismo-socialista...), como a certa altura diz Traavik, “contém bastantes elementos familiares ao publico norte-coreano”, assaz habituado a digerir portentos de "kitsch" musical como a Moranbong Band, a Chongbong Band ou o Pochonbo Electronic Ensemble. Nos preparativos e ensaios para o concerto, os choques políticos e culturais vão sendo diplomaticamente limados e o que disso tudo ficou registado em Liberation Day basta para o tornar o mais interessante documentário a exibir na secção Indie-Music, do IndieLisboa. Mas preste-se também atenção a Bunch Of Kunst (o punk-hop abrasivamente proletário dos Sleaford Mods), Revolution Of Sound – Tangerine Dream (a história da banda de Edgar Froese) e Eat That Question – Frank Zappa In His Own Words (autoexplicativo).

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