17 December 2015

UMA MOSCA NA PAREDE


20 "takes" de ensaios, falsas partidas, fragmentos, esboços, versões alternativas, pistas só de guitarra ou de piano e baixo de "Like A Rolling Stone"; 5 de "Stuck Inside Of Mobile With The Memphis Blues Again" e "Visions Of Johanna"; 4 de "Love Minus Zero/No Limit", "On The Road Again", "It Takes A Lot To Laugh, It Takes A Train To Cry" e "She’s Your Lover Now"; 3 de muitas outras. E, para o inventário, conta apenas a edição de 6 CD de The Cutting Edge 1965-1966: The Bootleg Series Volume 12 (Deluxe Edition), de Bob Dylan. Porque, se considerarmos os 18 (dezoito) CD de The Cutting Edge 1965-1966: The Bootleg Series Volume 12: (Collector’s Edition), deverão ser contabilizadas as 12 entradas de "On The Road Again", as 16 de "It Takes A Lot To Laugh, It Takes A Train To Cry", as 20 de "One Of Us Must Know (Sooner Or Later)", as 15 de "Visions Of Johanna", as 22 de "Can You Please Crawl Out Your Window?", as 10 de "Highway 61 Revisited"… e ainda nem sequer chegámos a metade da colecção.



Hipóteses explicativas: 1) o estado de desespero da indústria discográfica é de tal ordem que, sem pestanejar, está pronta a publicar 379 faixas de “todas as notas gravadas durante as sessões de 1965-1955, todas as takes e textos alternativos”, num total de 19 horas de música, em exercício extremo de rapar o fundo aos arquivos; 2) a comunidade de dylanólogos e "scholars" afins não ansiava senão por tal empreendimento e colocar-lhe à disposição o registo de literalmente tudo o que aconteceu durante aquele ano em que Bringing It All Back Home, Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde mudaram o curso da história da música é não apenas tornar realidade um sonho húmido como a possibilidade de voltar a fazer tilintar as caixas registadoras (“Money doesn’t talk, it swears”, mas os 5000 exemplares iniciais da Collector’s Edition, ao preço de cerca de 550€, já esgotaram); 3) está tudo louco.



Vendo bem, são as três verdadeiras. Trata-se, sem dúvida, de uma pouco frequente possibilidade de, garimpando uma discografia, conseguir continuar a extrair dela o valor que não muitas outras conterão – manobras idênticas estão em curso para The Ties That Bind: The River Collection, de Bruce Springsteen (4 CD + 3 DVD), The Velvet Underground Loaded: Reloaded (5CD + DVD) e The Velvet Underground The Complete Matrix Tapes (4CD), tal como aconteceu com as SMiLE Sessions, dos Beach Boys que, na edição Deluxe, incluíam um CD integralmente preenchido com 24 "takes" de "Good Vibrations" – e, naturalmente, para o fazer uma considerável dose de desmesura e megalomania é imprescindível. Por outro lado, no caso de Dylan, é também uma oportunidade para se comprovar, em directo e (praticamente) ao vivo, que aquilo que ele afirmava acerca de "Like A Rolling Stone" (“É como se um fantasma a tivesse escrito, ma tivesse dado e desaparecesse a seguir. Não sabemos o que isso significa. Apenas que o fantasma me escolheu para entregar essa canção”) não era exactamente a regra. Ou raramente era a regra. Tarefa de investigação e análise que não será, evidentemente, para todo o tipo de devotos de Bob Dylan mas dirigida, sobretudo, aqueles tão curiosos acerca do resultado final como do processo que a ele conduziu. O que, tudo somado, é bem capaz de proporcionar um Natal mais feliz a muita gente (editora incluída).



É importante refrescar a memória: aos 23 anos, nos quinze meses, entre a quarta-feira, 13 de Janeiro de 1965, durante a qual Dylan registou em estúdio as takes definitivas de "Maggie’s Farm", "On The Road Again", "It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)", "Gates Of Eden", "Mr Tambourine Man" e "It’s All Over Now, Baby Blue", e a quinta-feira, 10 de Março de 1966, quando concluiu, em Nashville as gravações de Blonde On Blonde, dizer que uma página se tinha virado seria um inexplicável eufemismo. Na digressão da Primavera de 65, documentada por D. A. Pennebaker em Don’t Look Back, Bob Dylan desfez, em simultâneo, a imagem do autor de protesto politicamente empenhado (“Nada tenho a dizer sobre aquilo que escrevo. Não escrevo por nenhuma razão em especial. Não há mensagem nenhuma”) e do ídolo pop reverente para com os fãs; em Março, grava Bringing It All Back Home, em que, num dos lados, era acompanhado por uma banda eléctrica; a 20 de Julho, publica o single "Like A Rolling Stone", jacto de bílis de inéditos 6’13” e, cinco dias depois, no Festival de Newport, ao lado de Al Kooper, Mike Bloomfield, e outros elementos da Paul Butterfield Blues Band, desperta a ira da ortodoxia folk com "Maggie’s Farm" e "Like A Rolling Stone"; a 30 de Agosto, edita Highway 61 Revisited que inclui "Ballad Of A Thin Man" (“Because something is happening here but you don’t know what it is, do you, Mister Jones?”) e os 11 minutos de "Desolation Row"; a 16 de Maio de 1966 (um dia antes de, num concerto no Manchester Free Trade Hall, ter enfrentado um motim de fãs em fúria que lhe chamam “Judas”) sai Blonde On Blonde, primeiro duplo álbum rock, cujo quarto lado era totalmente ocupado pelos 11’23” de "Sad Eyed Lady Of The Lowlands". Autorizar-nos a penetrar nos bastidores e, qual mosca na parede, assistir ao vertiginoso desenrolar dos acontecimentos, é o imenso privilégio que The Cutting Edge 1965-1966 nos oferece.

2 comments:

alexandra g. said...

Johnny Be Goode,

Exactamente como nós, incultos musicais, nos sentimos, lendo-te, qual mata Philippe-Patrick Starck moscas :)



João Lisboa said...

:-)))