LISTA NEGRA
(originalmente aqui)
É capaz de ser a entrada mais deprimente de toda a Wikipedia. Não é, de certeza, por esse motivo que apenas existe em inglês e sueco mas, se desvalorizarmos o facto de o inglês ser o esperanto contemporâneo, os falantes de todos os outros idiomas, de certo modo, devem ficar agradecidos por terem sido, até agora, poupados. Chama-se “Outline of war” e, considerando que cada sub-capítulo abre para uma infinidade de outras entradas (quase nenhuma delas propriamente curta), o efeito de imediata anulação de qualquer vestígio de optimismo antropológico que pudesse ainda sobreviver é enormemente potenciado pela esmagadora dimensão da informação disponível. Não responde cabalmente a uma das interrogações que nos pode conduzir lá – desde que existem registos históricos, houve algum ano sem a ocorrência de guerras? – mas também não autoriza muitas dúvidas de que a resposta mais do que provável é “não”. Disciplinadamente (deveria, talvez, dizer-se militarmente?) estruturada segundo tipos de guerra, formas de a travar, estratégias, tácticas, variedades de armamento, épocas, regiões e número de baixas, é educativo saber que, se o Paleolítico Inferior e Médio terão sido razoavelmente pacíficos, a partir do Paleolítico Superior, o sapiens sapiens entregou-se, até hoje, de alma e coração, ao glorioso, ininterrupto e inesgotável empreendimento de, sob qualquer pretexto, exterminar o máximo número de exemplares do sapiens sapiens mais próximos.
Por outras palavras: desde que, em 1963, Bob Dylan cantou "Masters Of War", por todo o mundo – se a lista da Wikipedia é exaustiva –, foram desencadeados (ou persistiram) exactamente 100 conflitos armados. Será isso motivo suficiente para baixar os braços e desistirmos de pensar que a cantiga é uma arma (metáfora, no contexto, assaz desconfortável...)? PJ Harvey não partilha dessa opinião. E se, no último e óptimo Let England Shake (2011), já se havia colocado na posição de imaginária “song correspondent from the front-line” nos cenários de matança da Primeira Guerra Mundial (“I've seen and done things I want to forget, I've seen soldiers fall like lumps of meat, blown and shot out beyond belief, arms and legs were in the trees, I've seen and done things I want to forget, coming from an unearthly place, longing to see a woman's face, instead of the words that gather pace, the words that maketh murder”), procurando, deliberadamente, sublinhar a forma aterradora como a História se repete (“As descrições da guerra não mudaram através dos anos. O que se aplicava há centenas de anos continua a poder aplicar-se hoje”), agora, numa canção, "Shaker Aamer", colocada inicialmente em "streaming" exclusivo no site do “Guardian” – mas, rapidamente, saltando daí para a grande rede – denuncia a situação do último prisioneiro de guerra britânico em Guantanamo, detido há 11 anos sem culpa formada e em risco de ser transferido para outra cadeia na Arábia Saudita. Vigorosa "topical song" ao jeito tradicional no mesmo registo sonoro das de Let England Shake, não evitará, decerto, que a lista negra do “Outline of war” se alargue. Mas, pelo menos, servirá para recordar, como lá também se escreve, que “an absence of war is usually called peace”.
Eu sinto esse "optimismo antropológico" depois de ler isto :)
ReplyDelete???
ReplyDelete... sinto a boa guerra, feita pela PJ Harvey, entre outros, como o meu camerado. A denúncia é uma arma, com música, com poesia, com prosa, sem melodramatismos: j'accuse, tu accuses,...
ReplyDeleteOrraite.
ReplyDelete:-)
Orraite sem um beijinho não vale nada, até parece o João Gonçalves, ilustre, assíduo e connoisseur comentador político :p
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